16.11.22 | Brasil
“Ser judeu está no comportamento, no modo de ver o mundo, de enfrentar os problemas e, para os religiosos, na sua relação com o Criador”, diz Marcelo Madureira
Engenheiro de formação e humorista por vocação, o ex-casseta Marcelo Madureira fala à CONIB sobre a sua história, sua origem, o reencontro com sua identidade judaica, a influência do humor judaico em sua carreira, suas conversas com rabinos sobre a essencia da vida, a democracia israelense e deixa uma mensagem aos jovens sobre tolerância e coragem para mudar, se reinventar.
Origem
A minha origem judaica vem pelo lado materno. Às vezes fico sem graça de falar isso, mas sou descendente direto do Mayer Amschel Rothschild. Sou tetraneto da filha mais velha do Mayer Amschel Rothschild, chamava-se Jeannette. Isso está registrado no livro da familia Rothschild, em que aparece toda a descendência, inclusive eu. Lá eu sou citado como ‘um famoso humorista’. Eles costumam fazer esse livro de genealogia de tempos em tempos. Infelizmente, só os quatro filhos homens, de acordo com o desejo de Mayer Amschel Rothschild, herdaram os negócios. E a minha tetravó recebeu apenas o dinheiro do dote. Ela se casou com o filho de outro banqueiro, chamado Benedikt Worms. Então vem daí a minha origem judaica, que foi diluída ao longo do tempo da história por vários motivos. Venho de uma familia não religiosa, sempre. Meu pai era católico, mas a nossa formação toda nunca foi religiosa. Somos judeus por parte de mãe. Nasci em Curitiba, onde tem uma comunidade judaica muito importante. Meu pai trabalhava no Banco Central e nós viajávamos muito entre Curitiba e Rio de Janeiro. Minha mãe não cultivava muito essa vida comunitária e a minha avó tembém não, porque meu avó tambbém era gerente de banco e também viviam pelo interior do Paraná e de Santa Catarina. Viviam uns dois anos em cada cidade, tanto que minha mãe e meu tio acabaram tendo que estudar em Florianópolis, porque naquela época o Segundo grau, como é hoje, só havia nas capitais.
O reencontro com o judaísmo
Eu me reencontrei com o meu judaísmo, a minha identidade judaica, aqui no Rio de Janeiro, quando viemos para cá da última vez. Fui estudar no Colegio de Aplicação, da UFRJ, onde havia muitos alunos judeus. E eles, talvez por uma afinidade interior, passaram a ser meus melhores amigos e são até hoje. O Colégio de Aplicação era um colégio judaico laico e nós todos éramos comunistas. E foi aqui, no Rio de Janeiro, que eu passei a frequenter a Associação Scholem Aleichem - ASA, onde eu participava das atividades culturais. Portanto, a identidade cultural era muito grande, mas sem nenhum conteúdo religioso. Lá ninguém fazia bar-mitzva, mas lembro que o Sergio Besserman, para satisfazer o avô, tirou um retrato dele com os tefilin, segurando a Torá, como se ele realmente tivesse feito o bar-mitzva.
Eu sempre fui muito ligado aos livros, à literatura, à cultura iídiche, e tive uma longa história com o bibliotecário da ASA e também passei a frequenter a colônia de férias judaica Kinderland, ligada à Associação Feminina Israelita Brasileira, onde fui muito bem recebido, e à qual sou ligado até hoje.
As celebrações judaicas
Eu brinco afirmando, embora seja verdade, que o judeu pode ser tudo, inclusive ateu. E eu era ateu, mas sempre me considerei judeu. Curiosamente eu me casei com uma não judia e até antes da pandemia fazíamos em casa o jantar de Pessach, não com o cunho religioso. Isso porque eu acho o Pessach, assim como outras festas judaicas – o Rosh Hashaná, o Yom Kipur -, para mim têm um grande significado, sem menosprezar o lado religioso. Sou amigo e gosto muito do rabino Nilton Bonder e a Claudia, minha mulher, também é muito amiga da Esther, esposa dele. Temos muita afinidade e conversas ricas, e muitas vezes discordantes, sobre a essência da vida e da própria religiosidade. Mas isso em nada afeta o carinho que temos um pelo outro. Tenho também relação de amizade com o rabino Sérgio Margulies, da ARI-RJ. Gosto muito de conversar com rabinos, porque, além de líderes comunitários, eles transcendem o religioso e, de certa forma, são os guardiões de toda uma sabedoria. É muito peculiar essa minha ligação com os rabinos. O curioso é que fiz recentemente esse exame, que muitos fazem, para saber a sua origem genética e soube que parcela importante de minha genética é de judeu ashkenazi. A origem da minha mãe é da Europa Oriental, da região que fica próxima à Alemanha, Polônia e República Checa. E concordo com o que um rabino disse que o primeiro passo para ser judeu é se considerar judeu. Isso é verdade porque muitas pessoas, judeus e judias, não o são na essência. Com respeito a todas as culturas e etnias – e tudo isso é muito rico – ser judeu está na ética e no comportamento, no modo de ver o mundo, de enfrentar os problemas, como se pratica o bem, na sua relação com o mundo e o universo e, para os religiosos, a sua relação com o Criador, com as tradições e o compromisso com a preservação de uma cultura, que têm importância na história da humanidade e que não é melhor nem pior que qualquer outra. Tenho muita inveja de quem tem fé. Infelizmente eu não tenho essa capacidade, essa grandeza. A minha formação foi toda muito iluminista.
Sobre Israel
Israel é um fenômeno. Não que eu concorde com todos os governos de Israel e é claro que eu tenho uma simpatia pelos partidos de esquerda, mas o fato é que Israel é um exemplo de democracia único, certamente no Oriente Médio e até no mundo. Isso porque é um país que vive ameaçado o tempo todo e por essa razão poderia ser um Estado totalitário. E, ao contrário disso, a base da defesa do povo israelense é a democracia. Já estive em Israel e gostaria de voltar lá mais vezes. E o que vemos lá é que há judeus israelenses, assim com há israelenses muçulmanos e cristãos. É um Estado judeu que mostra ao mundo particularidades que são muito importantes, a despeito dos governos. Israel é um exemplo para o mundo contemporâneo, de resistência, de tenacidade, de produção intellectual e cultural.
O humor judaico
Esse tipo de humor judaico, auto-depreciativo é muito forte no mundo. A influência judaica é imensa, essa coisa de brincar consigo mesmo, com seu destino. E tem piadas judaicas que só quem é judeu entende. O judaísmo tem humor intrínseco. Vejo humor até na própria história do sacrifício de Isac, filho de Jacob, que parece ser uma grande piada que Deus faz com Jacob. E essa passagem também tem uma leitura humorística. A coisa mais importante para um judeu é a vida e para defendê-la pode tudo, até quebrar o Shabat, comer carne de porco e até ser canibal. A máxima judaica de ‘não faça aos outros aquilo que não gostaria que fizessem com você’ é perfeita.
Ensinar e aprender
Fui alfabetizador do Instituto Mobral e foi uma experiência muito importante para mim. Fui professor de alfabetização do Mobral na favela Cantagalo-Pavão-Pavãozinho. Isso nos anos de 1970-80, quando eu vim morar no Rio de Janeiro. E essa não deixa de ser uma característica judaica de repartir com os outros aquilo que temos e que, nesse caso, é conhecimento. Posso dizer que meus alunos me deram muito mais do que eu pude dar a eles. E tem um histórico familiar: minha mãe era professora, minha avó era professora e outras mulheres na familia também lecionaram. Sou engenheiro de formação, mas sempre gostei muito de dar aula. Mas o que eu gusto mesmo é de aprender. Sei o tamanho da minha ignorância: é imensa, incomensurável até. Mas todo dia eu quero dormir menos ignorante do que acordei. Isso também é judaico.
Engenharia, mídias digitais e carreira
Fui formado para ser engenheiro. Nunca imaginei que iria virar artista, ou seja, o que era profissão virou meu hobby e o que era hobby virou profissão. Eu nunca abandonei meus estudos. Me formei engenheiro de produção na UFRJ, fui trabalhar no BNDES, fiz mestrado em economia, depois fui estudar planejamento industrial na Itália. Hoje eu tenho uma empresa, continuo mexendo com arte, mas atualmente talvez eu seja mais engenheiro do que artista. Eu já cantei, fiz show, programa de televisão, de radio, atuo em todas as mídias e hoje me dedico principalmente à mídia digital.
Mensagem aos jovens
Temos que ser tolerantes, conosco e com o próximo e precisamos entender que todos nós somos humanos. Quanto mais avançamos em tecnologia, mais importante é valorizarmos a filosofia, as ciências sociais, as ciências políticas, a psicologia, a antropologia, a sociologia, as relações humanas. Então o que eu recomendaria aos mais jovens é tolerância, com aquilo que nos é diferente, e coragem para mudar. Hoje, para sobrevivermos o processo de mudança é contínuo. Você não tem que se reinventar de quando em quando. Você tem que permanentemente se reinventar. E para isso é necessário coragem, ao mesmo tempo em que exercitamos a nossa tolerância. O justo vem da conversa, do controverso civilizado e do bom humor. Devemos começar rindo de nós mesmos e depois aceitarmos quando riem de nós, quando reparam nas nossas fraquezas e mesquinharias. Ter bom humor é muito importante.