10.08.22 | Brasil
“Quando eu descobri que minha mãe era judia eu já tinha meus filhos, mas a frase que ela me disse sobre ter orgulho de ser judeu não saiu mais da minha cabeça”, diz Claudia Costin
Professora, acadêmica, administradora, economista e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, Claudia Costin fala à CONIB sobre a sua origem, os desafios na educação e como foi a descoberta tardia de ser judia. “Quando eu descobri que minha mãe era judia eu já tinha meus filhos, já tinha função no governo e morava em Brasília, mas a frase que ela me disse sobre ter orgulho de ser judeu não saiu mais da minha cabeça”, diz ela. Veja a seguir a entrevista:
Origem:
Meu pai é romeno e minha mãe húngara. Portanto eu sou a primeira geração nascida no Brasil. Isso me trouxe uma educação diferente, como eu ter aprendido português no jardim de infância, e não em casa. Em casa se falava francês e essa foi a minha primeira língua. Isso me trouxe a percepção de que eu era um bichinho diferente da média das outras crianças, embora São Paulo seja uma cidade que abriga pessoas das mais diferentes origens. Na minha família se falava diferentes línguas: havia um ramo que se comunicava em alemão, minha mãe falava com minha avó em húngaro e meu pai falava com os pais dele em romeno.
A descoberta do judaísmo:
Fui educada como católica: fui batizada, fiz primeira comunhão, mas eu tinha consciência de que havia algo diferente na família, embora soubesse que era católica. Estudei em colégio de freiras. Sabia que minha mãe era protestante e que meu pai era católico, mas que optaram por eu ser católica. Pouco tempo depois, quando eu ainda era criança, começaram a nos visitar parentes da família de meu pai que eram judeus. E na minha cabeça se formou uma narrativa de que meu pai era de origem judaica e que minha mãe era protestante. Quando eu tinha cerca de 12 anos, talvez um pouco menos, meu pai chamou meu irmão mais velho e eu e nos disse: ‘Nunca se esqueçam de que vocês são judeus!’. Achei muito estranha essa revelação, porque, para mim, religião era aquilo que você tinha em casa e até então sempre soube que eu era católica, porque meu pai era de uma família que se converteu ao catolicismo. A família da minha mãe não. Depois eu descobri que a família dela não havia se convertido, apenas falsificara os papeis. Quando eu descobri isso, achei esquisito, mas como meu pai era um pouco patriarca não questionávamos nada. E eu perguntei para o meu irmão; ‘Como assim nós somos judeus?’ E ele me respondeu: ‘Não liga, adulto é assim mesmo, às vezes falam coisas sem pé nem cabeça’. E aquilo foi suficiente para mim.
Quando eu descobri que minha mãe era judia eu já tinha meus filhos, já tinha função no governo e morava em Brasília. Foi quando minha mãe resolveu escrever a história dela e, ao escrever esse relato, ela conta como foi o ano de 1943-44 na Hungria. Ela morava em Budapeste e, ainda criança, quando foi participar de um campeonato de natação não a deixaram entrar na água e, ao perguntar o motivo, ela ouviu: “Porque você vai sujar a água, porque é judia”. Até então ela não sabia que era judia. E aquilo a marcou de tal forma que ela resolveu ‘poupar’ os filhos de uma eventual dor semelhante. E quando resolveu contar essa história, fez questão de explicar que não queria piedade de quem quer fosse, mas, sim, para que as futuras gerações possam ter orgulho de sua origem e não vergonha, como ela sentiu naquele dia.
Aquela frase me marcou para o resto de minha vida. Foi em 1995 que ela escreveu isso e desde então essa frase sobre ‘ter orgulho de ser judeu’ não sai da minha cabeça.
A busca de respostas
Hoje entendo bem o que passou na cabeça deles, embora eu não teria feito a mesma coisa. A ideia era ‘vamos poupar as futuras gerações desse sofrimento’. Mas ela repensou isso, quando falou em ‘orgulho de ser judeu’. Quando eu li a história dela, escrita por ela, nas palavras dela, eu fiquei muito triste. Não parava de pensar naquilo que ela sofreu e chorei muito. Depois de alguns dias, comecei a buscar respostas e fui procurar um rabino para conversar. Mas eu morava em Brasília e não encontrei naquela ocasião nenhuma sinagoga. Foi então que resolvi procurar o (Henry) Sobel, que era o único rabino que mesmo os não judeus conheciam. Eu levei até ele uma cópia da história da minha mãe e ouvi que eu tinha que documentar isso. Ele olhou pelo ângulo jurídico, de que eu devia buscar a documentação necessária para provar que eu era judia. Mas não era essa a minha questão. E um dia, enquanto eu estava tentando tirar mais uma cópia dessa história para um amigo húngaro, a minha secretária me disse que um rabino de Brasília estava querendo falar comigo. E, em meio a essas coisas misteriosas que a vida conspira a favor, entreguei a ele a cópia da história da minha mãe que estava sobre a minha mesa e à noite ele me ligou, se oferecendo para estudar comigo sobre o judaísmo. A partir daí, uma vez por semana, nos reuníamos para estudar. Mas, a partir do terceiro encontro, eu resolvi parar, porque estava convicta de que eu era judia.
Esse foi o meu encontro com judaísmo e, partir de então, resolvi educar meus filhos como judeus. Sou casada com um não judeu, meu marido é agnóstico, mas católico de origem. Mas eu resolvi educar meus filhos como judeus, até para não dar mais essa vitória para Hitler, de ‘matar’ as sucessivas gerações (de judeus). Essa é minha origem, uma história longa, mas é a história da minha origem.
O impacto da pandemia na educação
A educação é bem mais do que trabalho, é meu propósito de vida. Eu acredito muito numa sociedade coesa harmônica e menos desigual. Isso se constrói com algumas políticas sociais, mas sobretudo com educação. E, se não conseguimos garantir educação de qualidade para todos, nós não geramos uma sociedade como essa, com desenvolvimento inclusivo.
E, nesse contexto, com dois anos letivos inteiros de escolas públicas fechadas, foi uma tragédia, decorrente de outra tragédia, que foi a pandemia de Covid-19. Não à toa, muitos países mantiveram as escolas abertas para os mais vulneráveis, para que as crianças se alimentassem e para que não ficassem afastadas do ensino. Isso também porque muitos pais de famílias perderam seus empregos e sua fonte de renda durante a pandemia de Covid. Com isso, muitas crianças também perderam a aprendizagem. Portanto, foi muito desafiador ter as escolas fechadas por tanto tempo. Fomos um dos países do mundo que ficaram mais tempo com escolas fechadas. E vou dar uma notícia triste: Como eu acompanho a situação com os secretários estaduais e municipais de Educação, Roraima tem ainda hoje várias cidades que não reabriram as escolas. Muitos (prefeitos) usaram a Covid como um certo pretexto para não fazer investimentos e deixar as escolas em ordem. Isso é muito triste e significa que vamos ter um atraso terrível em termos de desenvolvimento de capital humano e de respeito aos direitos de aprendizagem dessas crianças e jovens. Avalio essa situação como um grande problema tanto de aprendizagem quando de segurança alimentar e de saúde.
O uso da tecnologia na educação
O recurso da tecnologia na educação veio para ficar, embora não substitua a presença do professor em sala de aula. Nenhum estudo prospectivo aponta na direção de o professor ser substituído em ensino para crianças e adolescentes. Claro que para adultos é possível haver educação à distância de boa qualidade, mas os novos não têm ainda desenvolvido o córtex pré-frontal, que é a parte do cérebro que faz a auto regulação e permite uma certa disciplina e autonomia para aprender. Para eles, a tecnologia é necessária, mas nas mãos de um bom professor. E agora professor é mais importante do que nunca, porque nós, no mundo do trabalho, competimos com robôs. Mas, na educação, vamos precisar de muito mais professores para nos tornarmos mais humanos. Nós nos tornamos imprescindíveis nesse novo contexto na medida em que reforçamos o elemento humano. A indústria do cuidado continua importante, desenvolver nos jovens a capacidade de pensar com autonomia é cada vez mais urgente, assim como o estímulo à criatividade.
A educação é antídoto contra o discurso de ódio?
No Brasil, o discurso de ódio tem tomado múltiplos formatos, como cancelamentos nas redes sociais e manifestações de ódio a quem pensa diferente. Por isso acredito que uma educação que incorpore o elemento humano, que eduque para a empatia, para se colocar no lugar do outro, e que seja de fato inclusiva, como preconiza o objetivo do desenvolvimento sustentável, permite combater os discursos de ódio. É bom lembrar que só ter anos de escolaridade, com bons conteúdos, a Alemanha tinha e muita gente com nível superior foi capaz de cometer grandes atrocidades. Portanto, só educar para conteúdos não nos leva a um patamar civilizatório importante. É fundamental que tenhamos o que os ingleses introduziram, inclusive como uma nova disciplina, o letramento midiático, aprender a se comportar nas diferentes mídias, saber lidar com uma comunicação que construa uma cultura de paz e a boa notícia é que a nova base nacional curricular incorporou essas ideias. Não basta ensinar a ler. Vamos ter que aprender a ensinar a ler direito, ensinar matemática, mas temos que desenvolver cidadãos responsáveis, com uma ética intergeracional e que olhem para o próximo com empatia e sabendo dialogar sem ódio.
Sobre ataques armados em escolas
Quando eu fui secretária municipal de Educação no Rio de Janeiro, uma das escolas foi atacada a tiros por um ex-aluno, que se inscreveu numa atividade que havíamos criado para ex-alunos. Ele já adulto, com 25 anos, queria se vingar, matando crianças, porque havia sofrido bullying quando estudou nessa escola. Doze crianças morreram nesse ataque. Vejo esses casos com muita preocupação, apesar de no Brasil não acontecerem com a mesma frequência que nos Estados Unidos. Mas, num contexto em que se fala em liberar armas para a população em geral e isso já está acontecendo, vejo essa questão com grande preocupação. Escolas não deveriam ser o lugar em que pensamos em colocar mais controle, com gente armada para proteger as crianças. Mas, infelizmente, é o que passa em nossa cabeça. É difícil educar crianças para a paz num contexto em que alguém, com uma doença psicológica qualquer, ache legítimo sair por aí atirando contra crianças, adolescentes ou jovens universitários.
Isso precisa ser evitado de múltiplas maneiras: com uma boa estratégia de segurança e também com uma educação para a paz e com atenção para problemas psicológicos mais graves. Por isso comemorei muito a lei que estabeleceu que as redes de escolas públicas devem ter uma equipe de psicólogos que dê apoio a alunos não apenas para evitar essas situações, mas para outras, como dar atendimento no retorno às aulas após um período de confinamento como este, pós pandemia, em que alguns apresentaram problemas emocionais e até professores com problemas de saúde mental. E saúde mental é coisa séria.
O ensino escolar no Brasil
O Brasil foi um dos últimos países do continente a universalizar o acesso ao ensino fundamental, o que só aconteceu na primeira década do século 21. E parte dos desafios a uma educação de qualidade se deve a isso. Mas não basta estar na escola: é importante permanecer na escola e concluir os estudos, pelo menos até o final do ensino médio. Embora de uma forma muito lenta, a situação do Brasil vem melhorando nesses últimos anos e a taxa de conclusão do ensino médio chegou a 69 por cento no período pré-pandemia. Desde 2005 a cada edição da prova Brasil há uma melhora nos índices do ensino fundamental, o que antes chamávamos de curso primário. As cinco últimas edições mostraram melhora inclusive nos anos finais (nono ano) e em 2019 tivemos um salto de qualidade, mas ainda estamos num patamar baixo no ensino médio.
O que poderíamos aprender com Israel, ou outro país, para melhorar a qualidade do ensino?
Como devemos olhar para fora – para Israel ou outros países – para melhorar a qualidade do ensino? Primeiro olhando para o que nos mostram as pesquisas sobre os resultados positivos nesses países. Devemos olhar primeiro para o processo de alfabetização, que já passou por profundas alterações em todos os países que têm melhores sistemas de ensino, mas que o Brasil ainda resiste às mudanças. Países como os Estados Unidos, Inglaterra e França mudaram há cerca de 20 anos a forma de alfabetizar e nós continuamos do mesmo jeito. Esses países adotaram o período integral de estudo e não só tendo aulas, mas sim diversas outras atividades, como esportes, dança, clube de ciências. Nós, aqui, achamos que funciona o ensino de 13 matérias com quatro horas de aula. Mas a boa notícia é que alguns estados e municípios brasileiros vêm fazendo a coisa certa e obtendo resultados, apesar do baixo nível socioeconômico da população e do fato de a escolaridade dos pais ser mais baixa, como é o caso de Pernambuco, por exemplo, que tem o ensino mais parecido com o de Israel, e de países da Europa em termos de uma jornada única na escola e até com visões bastante contemporâneas, com uma educação mais ‘mão na massa’, que o Estado judeu vem praticando também. Hoje, as escolas públicas de ensino médio em Pernambuco são todas com carga horária de 7 a 9 horas de aula por dia. Não por acaso, Pernambuco que era o penúltimo colocado em 2007 no ranking do Ideb, que é o índice que mede a qualidade da educação, hoje está em terceiro lugar e tem se mantido nessa posição nos últimos seis anos. Ou seja, o Brasil precisa se inspirar no que é feito lá fora e também no que está dando certo aqui. Teresina, por exemplo é a melhor capital em educação no Brasil, melhor, inclusive, do que São Paulo. E lá eles mudaram a forma de alfabetizar, indo ao encontro do que a ciência mostra: eles passaram a gerenciar a aprendizagem, fazendo uma boa gestão (da aprendizagem). Sobral, no Ceará, é outro exemplo positivo de ensino de sucesso e isso se estendeu a outros municípios porque o governo do estado fez um pacto pela qualidade da alfabetização para expandir o método que está dando certo. É importante lembrar ainda que 68% do sucesso escolar de uma criança depende do quanto seus pais estudaram. E, embora essa realidade na Europa seja muito diferente da nossa por questões culturais, isso nos mostra que é possível avançar mesmo com esse pequeno índice de 32 por cento.
Mensagem aos jovens
A primeira mensagem que eu queria deixar para os jovens é: não vamos cair em narrativas paralisantes de que o Brasil virou uma tragédia em educação e que não adianta fazer nada. Eu digo: adianta muito. Podemos, com os exemplos que eu citei, mudar essa realidade. Em segundo lugar eu queria dizer que é possível construir um caminho de paz e de ética. O ódio não nos leva a lugar algum. Isso não significa que não devemos combater com seriedade a exclusão, as injustiças, mas não é por meio do ódio que se desconstrói todas essas questões. Em terceiro lugar, eu queria falar da minha experiência, da minha vida aos jovens judeus: foi muito bom reconstruir a minha identidade. A gente precisa ser inteiro no que faz e quem vos fala aqui é uma jovem senhora de 66 anos. Redescobrir a minha origem e entender quem eu sou – uma brasileira judia – em paz com suas múltiplas identidades significa que celebrar a nossa origem não se faz com ódio ao outro, de outra origem. É muito bom estar em paz com a sua origem e achar bonito que os outros eventualmente tenham outras origens e que estejam também em paz com isso. É assim que se constrói uma cultura de paz e de convivência.