08.02.23 | Brasil
Ícone da luta pela preservação do judaísmo em Belém e Manaus, Isaac Dahan destaca a importância de manter o legado deixado pelos primeiros imigrantes judeus marroquinos
Figura de destaque na comunidade judaica e na sociedade maior de Manaus, o dr. Isaac Dahan teve e tem papel importante na luta pela preservação do judaísmo nas capitais do Amazonas e Pará. Dahan nasceu em Alenquer, interior do Pará, em 28 de maio de 1948, filho de Haiim Shalom e Ester Dahan. Em 1972 formou-se em Odontologia na Universidade Federal do Pará e em 1981 recebeu o diploma de Medicina pela Universidade Federal do Amazonas. Ainda jovem morou em Belém, mas foi convencido a ir para Manaus em 1972 pelo então presidente do CIAM Isaac Israel Benchimol para as celebrações de Rosh Hashaná e Yom Kipur e acabou ficando na cidade. Dahan foi Shaliach Comunitário, diretor de sinagoga, orientador geral de Assuntos Religiosos, presidente do CIAM e atualmente é Chazan e Shaliach Tzibur da comunidade judaica de Manaus. Em julho de 2010, ele foi homenageado com o título de Cidadão Benemérito de Manaus por sua atuação no diálogo com outras religiões e por defender com firmeza a continuidade do judaísmo na Amazônia, segundo o então vereador Isaac Tayah (PTB), um dos autores da iniciativa. À CONIB ele fala sobre a sua origem, o aprendizado que teve convivendo com antigos sábios judeus marroquinos em Belém, sua trajetória no CIAM (Comitê Israelita do Amazonas) e deixa uma importante mensagem aos jovens. Veja a seguir:
Origem:
Não vou falar sobre a imigração judaica na Amazônia, porque o assunto é amplamente conhecido, há livros muito bons sobre isso. Mas eu tive o mérito de ter vivido minha juventude em Belém, até os 24 anos, e de ter conhecido e convivido de perto com aqueles primeiros marroquinos que chegaram à região. Isso porque tivemos algumas levas de imigração na Amazônia, como em 1910, com a abertura dos portos, e, após a criação do Estado de Israel houve outra – esta não foi mais em sua maioria para Belém. Mas não vou citar os nomes dos que eu conheci e convivi, porque corro o risco de omitir alguns, o que seria um erro grave. Mas pude conviver com muitos imigrantes e me inteirar de suas histórias de origem. Meus pais vieram de Rabat e Salé e muitos outros imigrantes judeus são originários de Tânger, Tetouan e Fez. E esses imigrantes que conheci e convivi contavam suas histórias de origem com alegria e certa nostalgia, lembrando da época em que viviam no Marrocos. Vieram para cá em busca de trabalho e de liberdade religiosa, principalmente. No começo, enfrentaram problemas de adaptação, com o idioma, o preconceito, mas, aos poucos, foram se adaptando e se integrando à sociedade. Queriam que os filhos estudassem e, para isso, se embrenharam nas matas e no interior – eu mesmo nasci em Alenquer, no interior do Pará, depois de Santarém – em busca de recursos. Meu pai foi um dos que deu duro para conseguir formar os filhos. E conseguiu. Eu me formei, meu irmão também. E muitos outros também se embrenharam pelo interior da Amazônia em busca de recursos para sustentar as famílias e custear o estudo dos filhos.
Em Belém eu frequentei a sinagoga Eshel Abraham - a primeira sinagoga do Brasil Império. Inaugurada em 1824 por Abraham Acris, essa sinagoga foi um marco histórico da imigração dos judeus sefaraditas e ficou conhecida como a sinagoga da Rua Campos Sales. Havia naquela época apenas duas sinagogas em Belém.
A convivência com sábios
Quando eu era muito jovem ir à sinagoga era um passeio. Eu tive o privilégio de aprender muito convivendo com antigos judeus marroquinos e a casa de meu pai era um lugar de sabedoria, porque reunia muitos deles em encontros. Meu pai ficou cego em 1950, lá, em Alenquer, no interior do Pará, batalhando nos castanhais. Naquela época não havia na região planos de saúde nem instituições para tratamento médico e ele acabou perdendo tudo e teve que ir para Belém. Lá moramos na rua Padre Prudêncio, onde também moravam muitas famílias judias. Em Belém, estudei, me formei e pude conviver na sinagoga com muitos sábios, que transmitiam uma força inigualável, um amor imenso pelo judaísmo e pela tradição, que muito me inspiraram. E conviver com esses antigos sábios marroquinos me deixava muito feliz. E, no período em que morei em Belém, as rezas e as tradições eram as mesmas daquela época antiga do Marrocos. Era como se estivéssemos lá.
Depois da segunda imigração (de marroquinos) para Israel, os marroquinos mantiveram as tradições, mas já foram adaptando algumas coisas novas de Israel nas rezas. Então havia muitas diferenças entre os primeiros imigrantes marroquinos em Belém e os que emigraram depois para Israel, após a criação do Estado judeu. Mas nunca vou esquecer de minha infância em Belém e do que aprendi com cada um que convivi naquela época.
A mudança para Manaus
Em 1972, fui convidado pelo saudoso professor Samuel Benchimol para ir a Manaus passar o Rosh Hashaná e Yom Kipur e aqui acabei ficando. Samuel Benchimol foi um homem com uma visão judaica das mais abrangentes que já conheci. Assim como o pai e o avô, ele se preocupava muito com a comunidade, em manter as tradições. Ele via o então chazan da comunidade (Jacob Azulay), que era amigo do meu pai desde Marrocos, envelhecendo e se preocupava em escolher alguém para substitui-lo. Foi então que ouviu falar de um jovem em Belém, que estava se formando em odontologia e que já demonstrava profundo conhecimento do judaísmo e das tradições. E foi assim que eu fui convidado a vir para Manaus, mas impus a condição de, antes, terminar o curso de Odontologia que estava fazendo e já cursando o último ano.
E cheguei em Manaus no Rosh Hashaná de 1972. É claro que depois fui à Israel, participei de cursos e seminários, mas a convivência com os antigos sábios marroquinos teve uma importância fundamental e valor inestimável para mim. E todo esse aprendizado eu procurei pôr em prática aqui em Manaus.
Os desafios na liderança do CIAM
Sim, eu fui presidente do CIAM (Comitê Israelita do Amazonas). Mas antes disso pude comprovar a dedicação e o empenho do professor Samuel Benchimol e do pai dele, Isaac Israel Benchimol, para manter o funcionamento do CIAM. Na liderança do CIAM procurei pôr em prática minhas ideias, como a criação de uma escolinha, e os ensinamentos que tive em Belém. Eu queria montar uma escola nos moldes da escolinha Sara Kislanov, de Belém, que atendia crianças judias e não judias no curso primário e que era conhecida pela alta qualidade do ensino. Mas não consegui realizar esse projeto porque a comunidade de Manaus era muito pequena – naquela época havia 120 famílias cadastradas por pessoas abnegadas, que se dispunham a colher dados e organizar arquivos. Optei então por um projeto menor, de uma escola complementar, para ensinar o hebraico e instruir jovens e crianças e meldar (rezar, em hakitia – dialeto marroquino). Tive o apoio necessário da diretoria do CIAM e, aos poucos, conseguimos formar gerações. Muitos desses jovens que conseguimos formar foram para Israel, outros para outras cidades do País, mas nos orgulhamos de ter dado a base e despertar o judaísmo neles.
Em 1974 fui a Israel. Lá participei de cursos e seminários e, depois disso, passamos a receber material pelo correio e, com esse aprendizado adquirido, pude assessorar outras gestões no CIAM. Em 1985 veio outra diretoria, mas eu continuei assessorando todas as que vieram depois.
A partir de 1987, comecei a vir mais a São Paulo e pude ver o trabalho da Fisesp e da CONIB. E isso me inspirou na criação de uma sede para o CIAM, que até então funcionava numa mesa, num espaço próximo à sinagoga.
Estudos, legado e tradição
Eu queria fazer medicina, mas na época as provas eram diferentes, não eram como são hoje. Em Belém, tínhamos que acompanhar uma lista na faculdade com chamada para fazer as provas de três matérias – química, física e biologia – marcadas em dias diferentes e de acordo com aprovação em cada etapa. Eu fui reprovado na prova de física, porque errei uma questão. E então optei por odontologia, porque sobravam vagas nessa área e assim fizeram também outros jovens que tentaram medicina e foram reprovados. Mas ao chegar em Manaus resolvi tentar medicina de novo, porque era o que eu gostava. E lembrei dos nossos pais, que se empenharam para que os filhos estudassem e se formassem. Fiz outro vestibular, poderia ter eliminado algumas matérias que cursei em odontologia, mas não fiz isso e passei. Mas foi o trabalho como dentista que me permitiu custear os estudos de medicina. E a própria comunidade, através do CIAM, me arrumou emprego de dentista em que atuei por oito anos. Portanto, sou grato à odontologia, porque me permitiu estudar medicina. Depois fui a São Paulo me especializar em gastroenterologia. Na volta, comecei a trabalhar também como médico. Mas isso, para mim, não era suficiente. Eu achava que tinha que passar adiante os conhecimentos que tinha recebido sobre judaísmo. Apesar de eu ter feito uma excelente pós-graduação em São Paulo na área de gastroenterologia, não cheguei a aplicar totalmente meus conhecimentos aqui em Manaus. Trabalhei como médico, exerci a medicina por 41 anos, tive o reconhecimento das pessoas nessa área, mas, depois, decidi dedicar meu tempo e minha vida à comunidade.
E continuo atuando como chazan na sinagoga, enquanto a voz me permitir. Em resumo: consegui realizar o sonho dos meus pais de me verem formado e o meu também, de atuar como médico.
Hoje vejo o legado daqueles antigos sábios marroquinos que eu convivi como uma missão. Eles não eram ortodoxos, nem progressistas, e hoje sei que não é mais assim. Mas, enquanto eu pude, tentei manter seus ensinamentos nesse meio-termo. Quando preciso de alguma informação específica sobre regularizações religiosas consulto um rabino, embora o último que consultei tenha me dito que diante de 200 anos de história da presença judaica na Amazônia e a forma como agimos para manter essa memória há pouco o que ensinar e muito a aprender com o legado deixado por esses primeiros imigrantes judeus e seus descendentes.
Mensagem aos jovens
Respeitar uns aos outros, não só entre nós, judeus de diferentes correntes e linhas de pensamento, mas também os de outras religiões e credos. É importante para nós, judeus, sabermos o valor do respeito para podermos dialogar com todos os setores da sociedade. O judaísmo tem mais de 600 gerações e sempre foi exercido pela união de todos – homens e mulheres. E a mulher tem grande importância no judaísmo e se nós não tivermos esse amálgama, esse espírito de união, vamos nos dividir muito. Portanto, a minha mensagem é a de que devemos sempre procurar os pontos de convergência para dialogarmos com todas as correntes e setores da sociedade, ter respeito por todos e reconhecer e procurar manter o legado dos que nos antecederam, porque olhar para o passado nos dá a direção do futuro. Manter o judaísmo sempre, assim o nosso povo não será apenas de 600 gerações e, sim, eterno.