“A ética é a chave para construção de um mundo melhor”, diz ministro do STJ Messod Azulay - Fundada em 1948, a CONIB – Confederação Israelita do Brasil é o órgão de representação e coordenação política da comunidade judaica brasileira.

08.03.23 | Brasil

“A ética é a chave para construção de um mundo melhor”, diz ministro do STJ Messod Azulay

Com uma série de livros e trabalhos publicados em revistas e boletins jurídicos, o professor, desembargador federal e recém-empossado ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Messod Azulay Neto, fala à CONIB sobre judaísmo, antissemitismo e o crescimento de casos de neonazismo e de discurso de ódio nas redes sociais no Brasil e no mundo, a lei 7.716, sancionada neste ano, que transformou a injúria racial em crime de racismo, e deixa uma importante mensagem aos jovens sobre a importância da ética para a construção de um mundo melhor.

Origem

Sou filho de marroquinos por parte de pai. Meu avô veio da cidade de Tetouan. Uma parte da família foi para Belém, no Pará, e outra veio para o Rio de Janeiro. Já meu outro avô, por parte de mãe, veio da Síria, da cidade de Aleppo. Vieram para o Brasil numa época de muitas dificuldades nesses países e talvez até de perseguições. Se instalaram no Rio de Janeiro. Eram pessoas de muita religiosidade. Não conheci meu avô por parte de mãe, mas conheci profundamente meu avô por parte de pai. Era um homem muito religioso e passou isso para meu pai e meus tios e essa religiosidade acabou ficando enraizada na família. E eu recebi essa herança com muita satisfação, porque acho que são princípios judaicos importantes para mim e minha família e vejo esse legado como uma espécie de missão que devo passar aos meus descendentes. Somos o que se costuma chamar de sefaraditas. Aqui, no Rio, morei 51 anos na Tijuca e, depois que os meus três filhos se casaram e foram morar em Copacabana minha mulher também decidiu ir morar lá para ficar mais perto deles.

Judaísmo

Outro dia, fiquei surpreso quando, conversando com um juiz auxiliar meu, no meu gabinete em Brasília, no STJ, num desses breves intervalos de trabalho, ele me revelou que ao procurar meu nome no Google encontrou como definição de religião minha: judeu ortodoxo. Estranhei um pouco essa classificação. Que sou judeu todos sabem, mas como o Google saberia que sou ortodoxo? O que essa plataforma sabe sobre o meu nível de religiosidade? Mas eu realmente sou judeu ortodoxo, desde que nasci.

Inicialmente estudei em escola pública (Escola Municipal Soares Pereira, na Tijuca), porque meu pai não tinha muitas posses. Naquela época havia aula aos sábados. Havia também um dia de folga durante a semana, mas esse dia nunca era no sábado. E eu não frequentava a escola aos sábados. Foi então que, diante da preocupação de minha mãe com o prejuízo que o não comparecimento às aulas nesse dia poderia acarretar nos estudos, meus pais resolveram procurar uma escola judaica. Assim, fui estudar no Colégio Scholem Aleichem.

Falo isso para explicar o nível de religiosidade da nossa família. Então, comemos casher (100%), guardamos o sábado, observamos todas as datas religiosas e isso jamais me trouxe qualquer problema. Como vou toda semana à Brasília, costumo levar minha alimentação (congelada, casher) numa pequena mala e lá armazeno na geladeira. Nos costumeiros almoços e jantares que acontecem com frequência em Brasília, eu participo de todos, mas não como nada.

Quando fui convidado a ir para o STJ, cheguei até a pensar se isso seria um obstáculo à prática da minha religião, mas vi que isso não aconteceu. Dá um pouco mais de trabalho (manter alguns hábitos religiosos), mas não chega a ser um fator impeditivo. E dessas questões religiosas eu não poderia abrir mão. Então, sou realmente um judeu ortodoxo!

Judaísmo e direito

Vejo muita relação entre judaísmo e direito. Daria até para fazer palestra só sobre esse assunto. Como desde cedo eu tinha noções de direito com o estudo da Torá – cheguei, inclusive, a estudar por um ano numa yeshivá de Petrópolis -, logo que entrei na faculdade de direito, na UFRJ, estranhei o fato de se falar muito em direito romano, alemão, Código de Hamurabi, direito greco-romano, e nunca se falar em direito hebraico, direito talmúdico, que existe há muito mais tempo.

Por exemplo, temos o Estatuto do Idoso, que é relativamente novo no País, e os direitos assegurados nesse documento já eram citados na Torá, no direito talmúdico, que tem 3.200 anos, na frase que diz: “Diante dos velhos te levantarás!”. E essa frase está escrita em hebraico no interior dos ônibus em Israel. Só para comparar: aqui os assentos para idosos no transporte publico só começaram a ser definidos há uma ou duas décadas. Ou seja, isso é algo que é tão antigo para nós, judeus, e foi tardiamente reconhecido pelo direito brasileiro e de outros países ocidentais. A comparação com essa questão e outras, previstas no direito talmúdico, despertavam minha curiosidade quando entrei na faculdade. Há muitas outras questões, como o direito de indenização, a confusão que se faz com a frase “olho por olho, dente por dente”, que não é uma vingança, como muitos pensam e, sim, o reconhecimento de um direito a ressarcimento de acordo com o dano causado. O meu questionamento era: por que não havia uma cadeira de direito talmúdico nas faculdades?

Mas depois vi que tudo isso era consequência de um forte antissemitismo, pois por que não reconhecer a origem de toda a base do direito ocidental, se todo o arcabouço jurídico era praticado há mais de três mil anos pelo povo judeu? Eu vejo claramente essa relação muito forte entre o direito e a religião judaica.

Discurso de ódio

Diferentemente da raiva e da ira, que são emoções passageiras, momentâneas, o ódio é algo cultivado e que está enraizado no consciente e no subconsciente das pessoas. E vou mais longe: penso que isso é transmitido de pai para filho, de geração à geração, e sem muita lógica. Esse é o caso da discriminação racial, contra negros, ciganos e principalmente contra judeus.

Quanto aos casos de neonazismo, esses não são recentes. Ao contrário, são muito antigos e são manifestações de ódio. Muitos povos sofreram com genocídios, mas, olhando para o passado histórico, vejo que ninguém sofreu tanto discurso de ódio quanto os judeus e os negros.

E esses episódios de discurso de ódio sempre existiram e estão aflorando agora com a facilidade que a internet oferece. A pessoa usa o anonimato da internet como uma barreira de proteção para difundir discursos de ódio. Hoje existe essa tecnologia que permite a difusão dessas manifestações de ódio, mas, como estamos sempre correndo atrás da evolução tecnológica, é importante que se criem meios para regular essas publicações e reeducar as pessoas. A sociedade e o poder judiciário precisam estar envolvidos nesse processo.

Nova lei contra o racismo

A lei 7.716, de agora, deste ano, que transformou a injúria racial em crime de racismo é importantíssima e endureceu bastante a pena para esses crimes. Agora é crime inafiançável e imprescritível. A adoção dessa lei foi um grande avanço para nossa sociedade. É claro que não existem medidas milagrosas, pois não é a criação de uma lei que irá garantir a não ocorrência de crimes. E essa é apenas uma medida a mais para um problema secular que acontece não só aqui, mas em todo o mundo. Acredito que essa lei se insere num conjunto de medidas que irão contribuir para coibir tais crimes. O Poder Legislativo deu um passo importante com a criação dessa lei e os poderes Executivo e Judiciário também devem fazer o seu papel para coibir esses casos, pois a lei por si só não resolve o problema.

Limites da liberdade de expressão

A liberdade de expressão é um direito fundamental, assim como existem outros direitos fundamentais protegidos pela nossa Constituição. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, não há uma supremacia de direitos. No Brasil não existe direito absoluto, nem mesmo o direito à vida. O que é necessário é ponderar quando dois direitos fundamentais se chocam. A liberdade de expressão não pode se sobrepor ao direito de uma pessoa de não ser ofendida na sua honra, na sua dignidade, no seu direito de não ser atacada. A liberdade de um termina onde começa o direito do outro. Uma pessoa não pode recorrer ao seu direito de exercer a sua liberdade de expressão para atacar um determinado grupo social. Aí então a liberdade de expressão precisa ser contida. É preciso que as pessoas entendam que não podem chegar numa rede social e falar o que querem sem ter de enfrentar as consequências jurídicas de seus atos. Os limites da liberdade de expressão é algo que tem sido muito debatido no Congresso Nacional, dado o número de casos em que as pessoas acusadas se defendem alegando que estavam exercendo o seu direito à liberdade de expressão.

Mensagem aos jovens

O que eu digo sempre para meus filhos é: tudo o que fizerem façam com ética. Isso significa fazer tudo com honestidade e da forma mais correta possível. E isso inclui tudo na vida: o estudo, o trabalho e as relações pessoais. A meu ver essa é chave para um mundo melhor! Esse foi o legado que deixei para os meus filhos e acho que eles assimilaram.


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