08.01.24 | Mundo
“Mata, mas não estupra!”
Em artigo na Folha de S.Paulo, a advogada, escritora e dramaturga Becky S. Korich recorre a uma frase do então candidato à Presidência da República Paulo Maluf para abordar a hipocrisia de organizações como a ONU Mulheres, criada para ser a defensora global da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, ao tratar com descaso a situação de extrema violência física sofrida por mulheres no ataque terrorista ao território israelense em 7 de outubro. Diz o texto:
Paulo Maluf, ao ser questionado por um repórter sobre um homem que tinha estuprado e matado uma mulher, respondeu com uma das declarações mais toscas já pronunciadas publicamente: "Tá bom... Tá com vontade sexual, estupra, mas não mata!". Isso aconteceu em 1989. Nesses trinta e cinco anos evoluímos muito pouco.
A pérola de Maluf me veio à mente depois de assistir semana passada a um vídeo (não divulgado publicamente) com imagens —indescritíveis— de cenas de violências —igualmente indescritíveis— cometidas pelos terroristas do Hamas contra mulheres no fatídico 7 de outubro. Não tive coragem de assistir antes, mas infelizmente a barbárie tem que ser exposta diante de tanta negação. Quem não tem estômago para ver as cenas, basta ler o relato que o jornal The New York Times publicou recentemente, baseado em provas contundentes, com detalhes dolorosos de crimes. São registros perturbadores da humanidade se automutilando, do mal em seu estado bruto.
Mulheres e adolescentes imploravam pelo fim. Mas o mal personalizado em vermes humanos negou a elas esse direito: morrer era pouco, elas mereciam mais. Mereciam o pior dos sofrimentos. Porque eram mulheres. Porque eram judias. Torturaram, humilharam, rasgaram vaginas, arrancaram seios, quebraram ossos. Atiraram em vaginas, cravaram pregos em virilhas, arrancaram unhas e olhos e feto, deceparam. Os vermes estupravam com ódio: pelo ódio. Estupraram sem se importar com cadáveres ao redor —o tesão, objetificado nos corpos de mulheres, era justamente pela barbárie. O tesão era pela repulsa, não pela atração como acontece com pessoas normais. Filme de terror.
E foi assim, como cenas fictícias de um filme de terror, que a barbárie foi tratada pelos negacionistas, fazendo voltar à cena a clássica inversão da vítima (filme que estamos cansadas de assistir) e a relativização de crimes sexuais (outro filme de horror do nosso cotidiano). Negação da verdade é um retrocesso. Conhecemos bem os efeitos do negacionismo-maníaco-cloroquínico dos tempos do auge da "gripezinha" da Covid, em que éramos aconselhados a "enfiar a máscara no rabo" entre outras gentilezas, o que custou milhares de vidas.
A hipocrisia perdeu a vergonha na cara, virou hábito. E quando um hábito se torna moda, passa a ser uma virtude. Não há balela mais mal-intencionada do que justificar as brutalidades cometidas contra mulheres como sendo uma "resposta à política de Israel" ou de um "ato de resistência à civilização ocidental" ou parte da luta palestina, que nunca foi representada pelo Hamas.
Diversidade, equidade e inclusão são os valores essenciais preconizados por organizações e instituições que visam promover um tratamento justo entre grupos de pessoas, independentemente do gênero, raça, etnia, religião, capacidades e orientações sexuais. A ONU Mulheres, criada para ser a defensora global da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, seria um desses grupos, mas não fez o seu papel. Pelo contrário, optou pelo silêncio, mesmo tendo recebido provas oficiais da violação em massa. Optou pela hipocrisia. Não foi imparcial, não foi apolítica, desviando-se da essência e missão da organização. Só depois de oito semanas (!) e de muito estrago, condenou o Hamas pelos ataques, e finalmente se declarou "perplexa com os inúmeros relatos de atrocidades baseadas em gênero e violência sexual durante os ataques".
"Todos eles se reúnem em torno dela", narrou uma testemunha. "Ela está de pé. Eles começam a estuprá-la. Eu vi os homens formando um semicírculo ao redor dela. Um a penetra. Ela grita. Ainda me lembro da voz dela, gritos sem palavras." Violência sexual? Depende do contexto. O trio de reitoras das universidades estavam "certas": se as vítimas forem judias, a realidade se inverte, o inaceitável se normaliza. Uma delas, Claudine Gay, após renunciar na última terça-feira (2) ao cargo que ocupava em Harvard, se retratou: "Sim, cometi erros. Em minha resposta inicial às atrocidades do 7 de outubro, eu deveria ter afirmado com mais veemência o que todas as pessoas de boa consciência sabem: o Hamas é uma organização terrorista que busca erradicar o Estado judeu. E em uma audiência no Congresso no mês passado, caí em uma armadilha bem preparada. Deixei de articular claramente que os apelos ao genocídio do povo judeu são abomináveis e inaceitáveis".
São justamente tais "armadilhas" engendradas pelos movimentos identitários (ou woke, ou coisa que o valha) que colocam a identidade das pessoas como critério para determinar o bom (oprimido) e o mau (opressor), que camuflam a verdade. Não se trata de escolher um lado e se comprometer incondicionalmente com ele, mas de dar nome às coisas: violência sexual, estupro em massa, feminicídio.
O horror não terminou no 7 de outubro. O horror está acontecendo agora, nesse exato minuto, mulheres ainda são reféns dos terroristas, sujeitas a todo tipo de violência sexual. Mas o mundo está ocupado demais com o ódio para se preocupar com elas. Não precisa ser feminista para lutar contra isso, basta ser humano.