15.08.24 | Brasil
“Eu devo muito à comunidade judaica porque foi através dela que eu consegui me integrar na sociedade brasileira e trabalhar”, diz presidente da Casa do Povo
O francês Benjamin Seroussi, que teve importante atuação no processo de revitalização da Casa do Povo (SP) a partir de novas ferramentas de gestão, fala à CONIB sobre a sua trajetória na comunidade judaica brasileira, os desafios que teve que enfrentar quando chegou ao Brasil e o seu “grande sonho” de devolver à cidade de São Paulo e ao País o antigo Teatro TAIB reformado.
“A história da minha trajetória na comunidade judaica brasileira é interessante, porque eu vim de fora. Nasci na França, cheguei no Brasil em 2004-2005 e, como estrangeiro, no início não foi tão simples, apesar de o País ter sido muito acolhedor. Ainda assim, não foi fácil para mim me integrar na sociedade e poder trabalhar no Brasil como estrangeiro. Acabei conseguindo um trabalho a partir de ‘rótulos’ de estrangeiro. Comecei trabalhando como francês mesmo. Primeiro no consulado francês até esgotar um pouco esse rótulo.
E o outro rótulo que me ajudou muito foi o fato de eu ser judeu. Foi então que eu consegui, em 2008, um cargo como curador-chefe do que era o Centro da Cultura Judaica, ou Casa de Cultura de Israel, que hoje é a Unibes Cultural. E eu devo muito à comunidade judaica, porque foi depois dessa trajetória, como estrangeiro francês, que eu consegui me integrar mais (na comunidade) e trabalhar. Então eu diria que a minha trajetória na comunidade judaica começou no Brasil.
Em São Paulo
A partir do meu trabalho no Centro de Cultura Judaica eu passei a entender melhor a especificidade da presença judaica em São Paulo. Vi que os judeus se concentravam principalmente em dois bairros: a Mooca, que reunia os judeus vindos do Oriente Médio – do Líbano e da Síria, principalmente – e o Bom Retiro, marcado pela presença ashquenazi originária da Europa Oriental. Claro que depois a comunidade foi se espalhando por outros bairros como Higienópolis e Pinheiros. Mas esses primeiros bairros marcam presenças históricas judaicas importantes em São Paulo.
E quando fui pesquisando mais a fundo o Bom Retiro me deparei com o Instituto Cultural Israelita Brasileiro, mais conhecido como Casa do Povo, que na época estava numa situação de decadência, mas ainda funcionando. E foi então que eu entendi que havia alguma coisa para ser feita ali.
Foram 12 anos entre o trabalho na Casa de Cultura Judaica e entrada na Casa do Povo. Isso, além de eu ter feito outras coisas nesse período fora da comunidade judaica.
Na Casa do Povo
Comecei na Casa do Povo como associado, depois como conselheiro e diretor e hoje sou diretor artístico e diretor executivo. A minha entrada ali acompanha a reconstrução da instituição. E hoje eu me pergunto: o que as pessoas que fundaram a Casa do Povo fariam hoje?
E esse é o questionamento constante de uma relação entre usar a história e interpretá-la, porque eu sempre digo que as pessoas que fundaram a Casa do Povo estivessem em São Paulo hoje eles não fariam no local a mesma coisa que fizeram na época. Isso porque tudo mudou. Ou seja, não se pode ser totalmente fetichista, querer manter o local exatamente como ele era e para o qual foi criado nos anos de 1950. Mas ao mesmo tempo, não se pode ser revisionista, não se pode contar uma história que não aconteceu e, em nome dela, fazer coisas que não fariam sentido para a instituição.
Então esse jogo de interpretação da história é circunstante e constantemente temos que avaliar se o que fazemos faz sentido. E, de fato, a Casa do Povo foi criada nos anos de 1950 por uma comunidade muito ligada ao que era chamada de esquerda na época, ao ‘partidão’ (Partido Comunista), com pessoas que já militavam na Europa, no contexto do que era novo e sob forte censura política e numa cidade que até então tinha poucas atividades culturais. Fora a Casa do Povo, havia o Masp, criado em 1951, e a Bienal, também criada em 1951. Havia então poucas galerias de arte. Esse era o cenário cultural da época.
A Casa do Povo se destacava por manter também uma escola, num período em que não havia tantas escolas (judaicas). E aí chegamos em 2012, quando se pensa na retomada da Casa: era preciso retomar a escola, a criação de um grupo de teatro judaico, ou criar outra coisa? E o que caracteriza a Casa do Povo é que sempre foi pensado em ser um local judaico e de cultura, um centro judaico de cultura e não apenas um centro de cultura judaica. Ou seja, ele (o centro) é intrinsecamente judaico em tudo que faz, mas ele faz isso entendendo que ser uma casa judaica é ser uma casa aberta à todas as manifestações culturais, ao movimento negro e a outros movimentos, porque isso é judaico. Eu diria que a missão da Casa está pautada pela memória, criada por pessoas que fugiram da guerra, mas uma memória que sempre foi pensada no sentido de que a melhor maneira de horarmos os mortos é cuidar dos vivos e a gente quer lembrar mantendo viva a cultura que eles carregavam (judaica, iídiche e secular). E um segundo pilar é a ideia da coletividade, tendo em mente que o fazer coletivo é sempre maior e mais poderoso. E o terceiro eixo é pensar o futuro: qual o lugar de experimentação, qual o lugar dessa comunidade judaica hoje em São Paulo?
Eu sou uma pessoa inquieta (e inseguro) por natureza, mas por trás de toda essa estrutura tem um Conselho, mais de cem associados e a cada assembleia vem a pergunta: estamos fazendo a coisa certa? A resposta vamos avaliando no dia a dia.
Projetos futuros
Entre eles o de reformar o Teatro TAIB, que foi um grande palco não só da comunidade judaica, mas do País. Temos esse desejo de devolver esse teatro para a cidade. Esse é um grande sonho! E também, diante do contexto atual que estamos vivendo, pensamos em fazer um trabalho de letramento mais forte de combate ao antissemitismo, em particular no campo da esquerda, que é muito diferente do antissemitismo que existe no campo da direita. E essa é uma das missões da Casa do Povo, que nasceu a partir de um movimento da esquerda. Atualmente, a Casa do Povo é uma instituição apartidária, sem qualquer vínculo com qualquer partido ou posição, sejam elas de esquerda ou de direita.
Embora seja apartidária, a Casa do Povo é política, porque a vida política extrapola a vida partidária institucional, mas tem uma relação de fato orgânica com esse campo amplo, progressista e de esquerda. E o nosso papel, como instituição judaica é lutar contra o antissemitismo de esquerda, que surge muito forte hoje com a situação no Oriente Médio, talvez porque tenha faltado um letramento suficiente no campo da esquerda. Penso que nós, como comunidade, não ensinamos devidamente para a esquerda o que é o antissemitismo para além da questão da Shoá. Precisamos analisar a situação que temos hoje, porque a situação antiga surge agora com nova roupagem.
Mas é questão do antissemitismo requer urgência, até porque ela se articula com o racismo. Então não é apenas uma questão comunitária e sim mais ampla.