02.07.25 | Brasil
“Universidades e o Hamas: discurso acadêmico ou legitimação ideológica?”
Artigo do professor Renato Athias comenta a crescente simpatia de setores acadêmicos por discursos que relativizam atos extremistas, assassinatos e sequestros como os praticados pelo Hamas. O texto cita recente evento online realizado no último dia 28, organizado por um grupo de ativistas indigenistas cuja proposta era debater “sobre o genocídio do povo palestino promovido pelo Estado de Israel, que nas últimas semanas também realizou ataques contra o Irã”. “No mesmo programa, abordaremos os ataques sistemáticos aos povos originários deste território hoje chamado Brasil”. “As ofensivas partem do Congresso Nacional e da Comissão inconstitucional criada pelo ministro Gilmar Mendes no STF, que tenta consolidar o chamado Marco Temporal, já declarado inconstitucional pela própria Suprema Corte”, diz o chamado para o evento. Leia a seguir a íntegra do artigo:
Algumas semanas atrás duas instituições de ensino, separadas por um oceano, estão no centro de uma polêmica sobre discursos acadêmicos e ideologia. A London School of Economics (LSE), no Reino Unido, e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no Brasil, se abrem para críticas por promoverem eventos que, segundo opositores, minimizam os atos do Hamas e reforçam uma narrativa unilateral sobre o conflito no Oriente Médio
Na LSE, o lançamento do livro Understanding Hamas and Why That Matters trouxe ao campus uma discussão sem espaço para o contraditório, segundo críticos. A obra, que busca contextualizar historicamente o Hamas, é acusada de apresentar o grupo como uma resposta legítima à existência de Israel, sem abordar suas ações terroristas.
Enquanto isso, no Brasil, a UFPB realizará uma aula inaugural com o professor Pedro Lima Vasconcellos, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), abordando: “A Questão Palestina e a Ciência da Religião: uma aproximação necessária”. Na realidade a conferência destacou a disputa territorial e religiosa entre israelenses e palestinos, além do histórico colonial da região. Opositores afirmaram que o referido evento suaviza e justifica os ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 e distorce a narrativa histórica ao desconstruir o conceito de antissemitismo.
A crescente simpatia de setores acadêmicos por discursos que relativizam atos extremistas assassinatos e sequestros tem sido alvo de análises e críticas internacionais. O jornalista britânico Jonathan Sacerdoti, especialista em terrorismo, publicou um artigo no The Spectator questionando a recepção de discursos que, segundo ele, legitimam atrocidades sem precedentes cometidas pelo Hamas.
Os neo-maxisitas, de lá para cá, abraçaram formas distintas, entre elas a "luta" contra a “opressão colonial”. Israel seria um caso dessa opressão colonial sobre as vítimas inocentes palestinas, defendidas pelo justo Hamas. Essa é a primeira resposta para a pergunta do porquê as universidades são tão claramente simpáticas a posições contra Israel e tendem a pintar o Hamas como um grupo legítimo de resistência aos judeus e sionistas no Oriente Médio e no mundo ocidental como um todo.
De acordo com os palestrantes relação entre a Palestina e a ciência da religião deve ser analisada à luz da colonialidade, compreendendo como as dinâmicas religiosas da região foram historicamente moldadas por processos de dominação, imposição epistemológica e apagamento de narrativas locais. A influência das tradições religiosas (judaica, cristã e islâmica) não pode ser dissociada dos legados coloniais europeus e do imperialismo que redefiniram as fronteiras, identidades e estruturas de poder no Oriente Médio.
A construção da identidade religiosa na atual Palestina está intrinsecamente ligada às relações de poder, notadamente a Irmandade Muçulmana, que determinaram a geopolítica da região, muitas vezes impondo narrativas exógenas em detrimento das cosmologias locais. O Oriente Médio, e em especial Jerusalém, tem sido um epicentro de disputas não apenas teológicas, mas também políticas e coloniais. A sacralização do território, amplamente instrumentalizada por diferentes atores ao longo da história, reforça a continuidade da colonialidade ao naturalizar hierarquias religiosas e geopolíticas.
Além disso, a própria noção de "Palestina" carrega as profundas marcas da colonialidade, sendo historicamente ressignificada por diferentes projetos de dominação, desde o controle otomano até as políticas britânicas e ao atual modelo de ocupação sob o consentimento da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, também conhecida pela sigla UNRWA (do inglês United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East). A recusa de sua legitimidade como entidade política e cultural reflete uma lógica colonial que nega a agência dos povos da região e perpetua a subalternização de suas narrativas. Dessa forma, repensar a Palestina sob a perspectiva da colonialidade significa questionar as estruturas de poder que moldam não apenas o presente, mas também as interpretações históricas e religiosas desse território.
As lutas enfrentadas pelos povos originários no Brasil e a questão palestina são frequentemente interpretadas sob a ótica das relações de poder entre grupos historicamente subalternizados e os estados nacionais. O artigo "Em um mundo em ebulição, as lutas palestina e indígena são contrapontos de resistência", publicado em 11 de fevereiro de 2025, destaca a crítica ao imperialismo e ao capitalismo, vinculando essas lutas às consequências globais, como a crise climática e os conflitos geopolíticos. Nesse contexto, são traçadas conexões entre a resistência dos povos indígenas no Brasil e a causa palestina, ambas representando símbolos de oposição a sistemas globais de opressão.
O núcleo do texto reside em uma conexão ousada entre a questão palestina, a luta indígena e a crise climática. Essa vinculação, apresentada ao longo do argumento, busca enquadrar todas essas situações como expressões de uma mesma lógica de exploração capitalista e imperialista. A menção a Andreas Malm, que relaciona a destruição da Palestina à devastação ambiental global, reforça essa abordagem, criando uma narrativa que atrai estudantes para enfrentar os sistemas de opressão dominantes, como uma outra versão atemporal das lutas de classes.
Em certos trechos, o texto assume um tom quase determinista, especialmente ao tratar a inevitabilidade das consequências do imperialismo e do capitalismo. Embora a urgência desse discurso seja compreensível, incluir perspectivas que enfatizem a agência dos indivíduos e as possibilidades de transformação em diferentes níveis (além da mera resistência) poderia oferecer uma análise mais equilibrada e rica dessas questões etnográficas, permitindo comparações mais abrangentes dentro de uma abordagem antropológica.
As acusações diretas não hesitam em identificar figuras e nações como responsáveis pelos atos acusados de genocídio e limpeza étnica. Estados Unidos, Israel, Benjamin Netanyahu e Donald Trump são frequentemente mencionados como símbolos de políticas opressoras e destrutivas. A retórica, carregada de indignação, traça paralelos entre essas ações e o negacionismo climático associado a Trump, além das ideologias neoliberais e privatistas defendidas em diversos países, incluindo o Brasil.
Essa tendência neomarxista recorrente na atualidade nas universidades, ao apresentar o Hamas como um movimento de resistência, ignora seu histórico de ataques contra civis, mulheres e crianças e sua classificação como uma organização terrorista por diversos países, incluindo Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido. A relativização desses atos e a desconstrução da história judaica acabam por reforçar uma visão distorcida do conflito, influenciando o debate acadêmico e político.
A polêmica reflete um embate mais amplo dentro das universidades: até que ponto a liberdade acadêmica pode ser confundida com a defesa de discursos que minimizam a violência? A questão permanece aberta, gerando intensos debates dentro e fora dos muros universitários.
As universidades, apesar de separadas pelo Atlântico, convergem ao adotar uma abordagem teórica que relativiza atos de violência extrema. Ao utilizar o aparato conceitual da colonialidade, elas acabam por justificar as execuções sumárias, violações de mulheres e assassinatos de crianças, atos que podem ser caracterizados como genocídio contra os judeus. Em vez de reconhecerem a natureza terrorista do Hamas, essas instituições acadêmicas apresentam sua atuação como uma legítima defesa territorial. No entanto, os próprios documentos fundadores do Hamas deixam claro que sua luta não se limita ao território, mas visa diretamente a aniquilação dos judeus, como evidenciado em suas declarações explícitas de incitação ao ódio e à violência.
Renato Athias é Doutor em Antropologia, Professor do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) da UFPE.