31.07.25 | Mundo
“Alimentar Gaza é imperativo moral”
Editorial de O Estado de S.Paulo desta quinta (31) afirma que “Israel precisa vencer o Hamas sem perder sua alma”. “Evitar a fome de civis é um dever humanitário – e medida necessária para reverter o isolamento do país e desmoralizar a propaganda jihadista”. Leia a seguir a íntegra do texto:
Gaza está faminta. E enquanto a catástrofe se alastra, o debate diplomático afunda-se em recriminações mútuas, obstruções burocráticas e cálculos políticos que deixam a desumanidade se sobrepor à razão.
O Hamas é o maior responsável pela tragédia palestina. Foi ele que desencadeou essa guerra. É ele que, desde então, age para maximizar o sofrimento do seu próprio povo, instrumentalizando-o como arma política. Há semanas os terroristas bloqueiam negociações de cessar-fogo, sabotam comboios de ajuda e, agora, incitam apoiadores a atacar, nas redes, esforços internacionais de socorro. A fome em Gaza é sua última cartada para terminar a guerra em seus termos. Mas se o mundo não pode esperar racionalidade nem humanidade dos jihadistas, deve cobrá-las dos atores que conservam algum grau de legitimidade e poder real de ação.
A situação calamitosa não é “fake news”, como alegam porta-vozes de Israel – trata-se de uma tragédia com contornos documentados e reconhecidos por aliados como os EUA e o Reino Unido. Ao revisar suas políticas, o próprio governo de Israel admite isso. Depois de tentar substituir o sistema de distribuição da ONU por hubs controlados – iniciativa que fracassou em termos logísticos, humanitários e diplomáticos –, o governo autorizou “pausas táticas” diárias em partes de Gaza, ampliou corredores humanitários, autorizou lançamentos aéreos de alimentos e voltou a permitir a entrada de caminhões via fronteira egípcia. Avanços relevantes, mas ainda insuficientes diante da escala da emergência.
O principal erro estratégico de Israel foi acreditar que poderia derrotar o Hamas estrangulando Gaza. Entre março e maio, a ajuda foi virtualmente bloqueada. A expectativa era de que a pressão máxima levaria o Hamas à rendição. Mas o agravamento da crise humanitária, ao contrário, fortaleceu a narrativa de vitimização do grupo, aumentou a pressão internacional sobre Israel, enfraqueceu suas alianças e não produziu concessões tangíveis. Ao apostar na fome como instrumento de guerra – mesmo que indiretamente –, Israel cometeu um erro moral e político atroz.
A melhor forma de minar a estratégia do Hamas é romper sua equação: a fome em Gaza é uma vitória moral para o Hamas. Isso exige uma guinada completa. De imediato, é urgente intensificar massivamente os lançamentos aéreos de alimentos. Além disso, Israel precisará abrir pontos de entrada disponíveis, eliminar entraves burocráticos e aceitar auxílio logístico de países árabes dispostos a agir, como a Jordânia ou os Emirados Árabes. A relutância em colaborar com agências internacionais ou permitir a entrada de jornalistas está corroendo a imagem global do país – e, portanto, sua legitimidade para combater o Hamas.
A ONU, por sua vez, tem falhado em garantir segurança mínima para os comboios e em responder com agilidade às mudanças no terreno. Também precisa flexibilizar seus protocolos e aceitar parcerias operacionais que não comprometam sua neutralidade.
Quanto aos países árabes, é preciso distinguir entre os que atuam e os que se limitam à retórica. A questão palestina não será resolvida com postagens inflamadas ou votos simbólicos na ONU. É hora de demonstrar compromisso real com a vida dos civis em Gaza.
O mesmo vale para os aliados de Israel no Ocidente. O governo dos EUA, ao admitir que há “fome real” em Gaza, deu um passo. Mas precisa ir além de declarações. É hora de redirecionar esforços para canais mais eficazes do que os atuais. Outras democracias liberais podem exercer pressão coordenada – e proporcional – por soluções para a crise alimentar.
Conter o colapso humanitário não é só um dever ético. É um imperativo estratégico. Quanto mais durar a fome, mais Israel se isola, mais o Hamas se fortalece politicamente e mais distante se torna qualquer perspectiva de paz ou reconstrução para Gaza. Nenhuma vitória militar compensará a perda da razão moral. E nenhuma democracia pode se dar ao luxo de perdê-la.
O tempo está se esgotando. Que não falte comida onde já falta tudo o mais.