04.08.25 | Mundo

“Um raro gesto árabe pela paz”

Editorial de O Estado de S.Paulo publicado no sábado (2) destaca a iniciativa inédita da Liga Árabe contra o Hamas, exigindo o desarmamento e a rendição do grupo e defendendo uma transição sob supervisão internacional rumo à retomada do controle civil pela Autoridade Palestina. Leia a íntegra do texto a seguir:

A diplomacia em torno do conflito entre Israel e os palestinos vive um momento raro. Em meio à devastação de Gaza, ao endurecimento de Israel e à fragmentação da liderança palestina, irrompeu uma iniciativa inesperada: uma declaração conjunta de países árabes recriminando de forma inédita o Hamas, exigindo seu desarmamento e renúncia ao poder e defendendo uma transição sob supervisão internacional rumo à retomada do controle civil pela Autoridade Palestina.

Em contraste com os três “nãos” da Liga Árabe após a derrota da guerra de 1967 – nenhuma paz com Israel, nenhuma negociação com Israel, nenhum reconhecimento de Israel –, a declaração, ainda que não reconheça explicitamente Israel, sugere uma articulação viável para o conflito e para uma solução de dois Estados. A proposta de uma missão internacional da ONU para administrar temporariamente Gaza aponta a uma transição, malgrado dura, pragmática.

Diante dessa oportunidade, espera-se da comunidade internacional clareza e responsabilidade. No entanto, o que se viu nos últimos dias foi uma corrida simbólica por parte de potências europeias, como França e Reino Unido, para anunciar um iminente reconhecimento do Estado da Palestina. Embora envoltas na retórica dos direitos e da paz, essas promessas soam, na prática, mais como gestos idealistas – se não demagógicos – do que instrumentos eficazes de diplomacia. Ambas as potências abrem mão de uma das poucas alavancas diplomáticas que poderiam usar futuramente numa negociação junto à Autoridade Palestina. Sem qualquer contrapartida institucional ou de segurança, o gesto corre o risco de premiar a narrativa do Hamas de que a violência compensa – e de deslegitimar, ainda mais, os palestinos moderados.

Ao contrário dessas iniciativas contraproducentes, a declaração árabe aponta para uma estratégia coerente: desarmar e isolar politicamente o Hamas, responsabilizando-o por sua atuação criminosa, e construir – com apoio internacional – uma transição que combine segurança, governança legítima e reconstrução. Um caminho estreito e incerto, mas que oferece, pela primeira vez em anos, uma possibilidade concreta de articulação entre os interesses regionais e os valores universais de paz e autodeterminação.

O sucesso da estratégia, contudo, depende de quatro frentes interdependentes repletas de dificuldades. A primeira é a interna palestina: a Autoridade Palestina é corrupta, carece de legitimidade junto à população e teria dificuldade para assumir Gaza sem profundas reformas institucionais. A segunda é a governança do próprio território devastado: dadas a destruição das estruturas civis e a fragilidade política da Autoridade Palestina, cresce a hipótese de uma tutela internacional transitória – como a ONU já realizou em Timor-Leste ou Kosovo. Essa alternativa, embora controversa, talvez seja a única capaz de evitar o colapso institucional ou a ocupação militar indefinida.

A terceira frente é a posição de Israel: o atual governo, sustentado por expansionistas radicais, rejeita a possibilidade de um Estado palestino e do retorno da Autoridade Palestina a Gaza. Ainda assim, setores mais pragmáticos da sociedade israelense começam a perceber que não só a permanência do Hamas, mas também o vácuo institucional que sua saída deixaria, representam uma ameaça existencial a longo prazo.

A quarta frente é a cooperação internacional. Os governos árabes, ao adotarem essa nova atitude, assumem riscos políticos internos significativos. Cabe às potências ocidentais – em especial EUA e Europa – garantir que essa coragem diplomática seja amparada técnica, política e financeiramente.

Reconstruir Gaza, estabilizar a região e viabilizar um Estado palestino são tarefas imensas – talvez as mais difíceis em uma geração. Mas não há alternativa. A perpetuação do conflito só alimenta o ciclo de decadência, ressentimento e extremismo, que ameaça tanto palestinos quanto israelenses. Por isso a iniciativa árabe, embora embrionária e imperfeita, deve ser entendida como o que é: uma rara janela de oportunidade. Mas essas janelas, como mostra a experiência, não permanecem abertas por muito tempo.


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