07.08.25 | Mundo
“A verdade enterrada nos túneis de Gaza”
Artigo da jornalista Nira Broner Worcman, diretora associada da agência Art Presse, em O Estado de S.Paulo desta quinta (7) aborda a grave condição física do refém Eviatar David, exposta em vídeo que mostra ele cavando sua própria cova, e lamenta que a cena tenha sido ignorada por parte da imprensa. Leia a seguir a íntegra do texto:
A imagem de um refém israelense, visivelmente desnutrido, cavando seu próprio túmulo num túnel do Hamas, não ganhou manchetes nem grande destaque na mídia e telejornais globais. Ao contrário: foi ignorada por parte significativa da imprensa.
Eviatar David, de 24 anos, foi sequestrado pelo grupo terrorista Hamas no dia 7 de outubro de 2023, enquanto dançava no festival Nova. No mesmo dia, 1.219 israelenses foram assassinados e outros 251 foram levados como reféns para Gaza. Na última sexta-feira, o Hamas divulgou um vídeo em que ele estava esquálido, curvado, com uma pá na mão, como se estivesse cavando sua própria cova, aludindo a imagens que acreditávamos que pertenciam apenas aos arquivos do Holocausto. Mas David não está em Auschwitz — está nos túneis de Gaza, 80 anos depois. A diferença é que agora há smartphones, internet e imprensa global. Mas nem isso bastou para sua imagem ganhar destaque. Não virou símbolo. Não virou capa.
Provavelmente, todas as fotos e vídeos que recebemos do enclave são manipuladas, principalmente as que são fornecidas pelo Hamas. Mas o estado de desnutrição de Eviatar David, com base no histórico de outros reféns que saíram de Gaza, não deixa dúvidas. A imagem está sendo utilizada pelo Hamas, como tantas outras já foram, para pressionar o governo de Israel a um cessar-fogo conforme suas exigências.
Poucos dias antes, outra imagem correu o mundo. A de uma criança palestina esquelética, nos braços da mãe, com olhar vazio — evocando a clássica Pietá de Michelangelo. A fotografia, carregada de simbolismo, virou estandarte da fome em Gaza. Mas, ao contrário da narrativa que a acompanhava, a criança não sofria de inanição provocada por Israel, como a imprensa denunciou. Mohammed Zakaria al‑Mutawwaq nasceu com paralisia cerebral e hipoxemia.
Desde o nascimento, é alimentado por suplementos especiais e vive sob cuidados paliativos. O jornalista britânico David Collier revelou os detalhes clínicos e mostrou fotos ampliadas com outros membros saudáveis da família. Porém a verdade foi cortada — literalmente — e a Pietá forjada coube no enquadramento ideal da comoção ocidental.
A Pietá de Gaza enganou o mundo não porque a dor seja fictícia — mas porque a imagem foi desonesta. Foi uma mentira eficiente, moldada para viralizar e gerar indignação automática, com o objetivo de pressionar governos e desacreditar qualquer esforço de assistência que não passe pelo filtro de grupos terroristas como o Hamas.
A fome existe em Gaza? Há indícios graves de crise humanitária, colapso sanitário e insegurança alimentar, algo não incomum em guerras prolongadas. Também é fato que grandes carregamentos de ajuda humanitária têm entrado em Gaza com apoio dos EUA e de Israel — e que o Hamas frequentemente intercepta e dificulta essa ajuda para favorecer seus próprios quadros. Mas isso raramente vira manchete. Inclusive, na imagem de David percebe-se o braço bem alimentado do terrorista oferecendo-lhe alimento. Já Mohammed, transformado em símbolo da fome causada por Israel, atende perfeitamente à narrativa que muitos desejam.
A imagem do menino palestino virou símbolo global. Já a do israelense Eviatar David foi rebaixada a notas de rodapé ou simplesmente desprezada. Por quê?
Talvez pelo fato de a dor de um refém judeu, faminto e torturado por um grupo terrorista, não se encaixar na narrativa mais palatável para parte da imprensa e do público: a do judeu poderoso opressor e da vítima palestina inocente. Quando o primeiro aparece como vítima — frágil, desamparado e indefeso — essa lógica se desfaz. A seletividade com que imagens e fatos são amplificados ou abafados não revela apenas critérios editoriais — revela assimetrias morais.
Como bem disse o jornalista israelense Haviv Rettig Gur, “o judeu do cristianismo clássico retornou com força total. E os novos puritanos finalmente encontraram um propósito na cruzada contra esse novo-velho vilão. Gaza é uma guerra genuinamente terrível. E pode acabar amanhã se o Hamas sair, ou mesmo libertar os reféns, ou mesmo concordar com um cessar-fogo. Mas a atuação do Hamas não se encaixa na nova versão secularizada da velha mitologia religiosa, não satisfaz a fome ocidental por significado que foi projetada sobre Gaza. E assim a atuação do Hamas é apagada; não é esse o objetivo. E só um idiota – ou talvez um vilão – apontaria isso".
Israel pode — e deve — ser criticado como qualquer país. Mas apagar ou relativizar a violência contra judeus é o antissemitismo adaptado ao século 21. Não vem com Hitler nem suásticas, mas com editoriais enviesados e manchetes seletivas. Um antissemitismo que não nega os fatos — apenas decide quais dores merecem ser ampliadas ou simplesmente vistas.
Enquanto isso, Eviatar segue enterrado em vida. Assim como outras vítimas israelenses — como as mulheres estupradas em 7 de outubro, esquecidas pela mesma imprensa que, em outros contextos, ergueu o lema “Me Too” como bandeira.
A máquina de manipulação da informação, que em outros tempos teve em Joseph Goebbels um de seus arquitetos mais infames, encontrou hoje novas roupagens. A estratégia de controlar narrativas e ocultar verdades incômodas é um eco sombrio daquela propaganda fatal, mas igualmente perigosa.
Quando a dor de um refém judeu vale menos do que a de uma imagem manipulada, estamos repetindo, com filtros modernos, os momentos mais sombrios da história que não podemos esquecer.