11.08.25 | Brasil
“É um erro deixar a IHRA em momento em que crescem o ódio, o racismo, o antissemitismo, a intolerância e o negacionismo”
A frase acima é de Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba, que, em entrevista à coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo de domingo (10), disse que “o governo não pode se levantar de mesa diplomática no momento em que o ódio, o racismo, o antissemitismo, a intolerância e o negacionismo 'só crescem'”. Acompanhe também pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=es-gecgREGU
"Abandonar o diálogo com outros países, abandonar as iniciativas multilaterais, é sempre um erro estratégico. É triste", disse ele.
Reiss, que foi indicado pelo governo há quatro anos para representar o Brasil na IHRA, explica como a aliança funciona e diz que ela vai "além de governos".
Descendente de quatro avós poloneses que sobreviveram ao Holocausto e chegaram ao Brasil como apátridas, o diretor afirma que os judeus devem se engajar em todas as lutas contra a intolerância, e não apenas no combate ao antissemitismo.
"Da mesma forma que o antissemitismo cresce no mundo inteiro, também crescem os discursos de ódio e de violência ligados ao racismo, à comunidade LGBT, à misoginia", afirma.
"Precisamos, sim, nos engajar em outras lutas, até para que a gente receba o engajamento de outros grupos", diz ele. "Ninguém combate o racismo sozinho”, pontuou.
Leia a seguir a íntegra da entrevista:
DIPLOMACIA
A IHRA serve de fato a um lobby branco, evangélico e de extrema direita e instrumentaliza o antissemitismo para calar críticos de Israel?
Eu não falo em nome da IHRA. Aliás, ninguém fala em nome dela no Brasil.
É importante entendermos que a IHRA é um pacto entre estados. Em 2021, eu fui convidado pelo Itamaraty para representar o Brasil [na associação], sendo um de seus delegados. Eu atuava portanto pelo estado brasileiro, e não pela IHRA, onde o Brasil ainda era um observador. Existem etapas para que um país se torne membro efetivo, e estávamos caminhando para isso.
Lula errou ou acertou ao retirar o Brasil como observador da entidade?
A IHRA é um espaço de articulação entre países. É um esforço conjunto de diálogo, de diplomacia. Foi criada nos anos 1990 como um compromisso global [entre diferentes países] de encorajar o estudo e a educação sobre o Holocausto.
A IHRA é, portanto, um foro internacional, um espaço multilateral. É um acordo em larga escala. Tem sede na Alemanha e uma presidência rotativa entre os países, que reúnem seus delegados duas vezes por ano.
Dito isso, [eu penso que] abandonar a diplomacia, abandonar o diálogo com outros países, abandonar as iniciativas multilaterais, é sempre um erro estratégico. É muito triste porque um dos princípios das nossas relações exteriores, desde o Barão do Rio Branco, é o universalismo. É dialogar com outros países, independentemente de ideologias, de blocos. E, ao invés de se sentar à mesa, o Brasil se levanta da mesa.
Nossa tradição é abrir portas, e não fechar portas. Nossa tradição é de abraçar, e não de se isolar.
Como a IHRA atua?
A IHRA vai muito além da sua definição de antissemitismo. Ela é um esforço maior em prol da educação [para o que foi o Holocausto]. São mais de 30 países que [a integram e] dialogam, que conversam, que unem forças literalmente.
Nem todos os países estão de acordo com todas as diretrizes [da associação para antissemitismo]. Isso faz parte do jogo. Isso vai além dos governos, isso é política de Estado.
Nos últimos 25 anos, Argentina, por exemplo, teve presidentes peronistas, liberais. E sempre fez parte da IHRA. Existe debate lá dentro. Os países concordam, discordam. Mas ninguém se levanta da mesa. Muito menos sem qualquer tipo de comunicação oficial para a sua própria nação.
CALAR OS CRÍTICOS
Há acusações de que as definições de antissemitismo da IHRA podem calar críticos de Israel. Por elas, criticar, por exemplo, a criação do Estado de Israel, dizer que é um empreendimento racista, pode ser considerado antissemitismo. E isso estaria levando à perseguição de intelectuais, inclusive judeus.
Todo esse imbróglio surgiu a partir da definição de antissemitismo que a IHRA criou, não ontem, não anteontem, mas em 2016. Essa definição foi votada e homologada pelos países membros da IHRA.
Definições são sempre problemáticas, porque no final das contas a gente lida com os próprios limites da linguagem. As palavras têm ambiguidade, têm peso histórico. Tudo o que é escrito é passível de ser interpretado.
Mas, levando isso em consideração, a definição de antissemitismo da IHRA é legítima, foi votada, foi aprovada, e pode ser debatida nesse mesmo foro. Os conceitos são dinâmicos. Existem outras definições de antissemitismo que são mais ou menos abrangentes. Tem [as definições] do Projeto Nexus, da Declaração de Jerusalém.
Mas, de novo, sem tirar o peso e a legitimidade dessa definição, todos os países que fazem parte da IHRA estão lá desde muito antes [da aprovação do catálogo sobre o que pode ser considerado antissemita]. Eles estão por causa de um pacto, no bom sentido da palavra. São países que reconhecem a importância diplomática e simbólica da IHRA na construção da memória do Holocausto e no combate ao antissemitismo há quase 30 anos.
É uma pena que essa discussão sobre a IHRA seja desvirtuada porque, a meu ver, o debate público não deveria ser sobre se uma definição se encaixa ou não se encaixa em um determinado caso.
Eu estou mais interessado numa comunhão de valores do que em seguir conceitos ao pé da letra. E os valores que envolvem o trabalho educativo da IHRA são respeito, tolerância, direitos humanos, a democracia e o letramento antinazista. Isso é inerente à educação sobre o Holocausto.
Eu posso dar um exemplo?
Sim, claro.
Em 2 de agosto foi comemorado o Dia Europeu em Memória dos Ciganos Vítimas do Holocausto, que foram perseguidos pelos nazistas, confinados, usados como mão de obra, assassinados. E discriminados, como são até hoje.
A IHRA tem projetos e propostas de políticas públicas para o combate ao anti-ciganismo no mundo inteiro.
A justificativa de que a saída da IHRA tenha a ver com a sua instrumentalização [pela direita] e com a mudança da política externa do Brasil não faz sentido. Porque, primeiro, como eu já disse, isso deveria ir além de governos. É política de Estado. E, segundo, porque a educação sobre o Holocausto precisa ser um consenso em todas as vertentes políticas. Ou voltar a ser um consenso.
Ela faz parte do pacto civilizatório do pós-Segunda Guerra Mundial, que está ligado à universalização dos direitos humanos, à construção de ambientes que não favoreçam o crescimento de ideias nazistas, fascistas, supremacistas, racistas, antissemitas.
Participar de fóruns multilaterais faz parte desse processo. Ajuda a evitar que esses discursos sejam legitimados, como foram no passado e como estão voltando a ser.
Por isso que eu digo que a discussão vai muito além da definição da IHRA sobre antissemitismo. Levantar-se da mesa num fórum multilateral é sempre a pior das opções.
Mas o senhor acha que a IHRA está sendo usada, em alguns momentos, para a perseguição a críticos de Israel?
Eu acho que a gente esbarra nos próprios limites, como eu disse, da linguagem. As palavras podem ser interpretadas, podem ser mal interpretadas. Mas a questão vai muito além disso.
A decisão de sair da IHRA como tentativa de construir uma blindagem retórica acaba indo contra os próprios valores que esse governo diz ter.
A educação sobre o Holocausto tem um papel transformador. Ela permite que a sociedade desenvolva instrumentos para combater o ódio, a intolerância, abraça as pautas que focam na luta contra o racismo, contra o antissemitismo, contra a LGBTQIA+ fobia, contra o capacitismo, contra o anti-ciganismo. Ela tem esse poder de destacar a inclusão das pessoas com deficiência, o acolhimento a refugiados, migrantes, apátridas. Tudo isso ela vai abraçar, abordar, e isso honra a memória das vítimas.
Num mundo em que o ódio e o negacionismo só crescem, o erro é recuar quando o que a gente mais precisa é avançar e discutir o que imaginamos ser necessário dentro dos foros multilaterais. Se o Brasil não está satisfeito, que não se isole, que continue sentado à mesa, que continue dialogando, porque isso faz parte da nossa tradição, da tradição das nossas relações internacionais.
ANTISSEMITISMO
Há uma guerra desumana em Gaza. Quem a condena, bem como quem faz críticas sobre como Israel foi criado e sobre a ocupação de territórios palestinos, faz críticas políticas, e não racistas. Como garantir a liberdade de as pessoas dizerem "sim, eu acho que Israel está cometendo um genocídio" sem que sejam acusadas de algo tão grave como ser antissemita?
Uma das premissas básicas das quais precisamos partir é que o antissemitismo é uma forma de racismo. Para que as críticas sejam legítimas, existem princípios que não podemos ultrapassar.
As sociedades não são homogêneas. Não se pode culpar nações inteiras por atos de seus governantes. E, principalmente, não podemos ferir o direito de existência e de autodeterminação dos povos.
Eu não acho produtivo para o debate que sejam feitas comparações simplórias, acusações, até porque elas envolvem possibilidades de calúnia, de injúria, de difamação. E muitas vezes elas são feitas com outras intenções. Eu prefiro trabalhar no âmbito dos valores que a educação do Holocausto tem para nos proporcionar.
O governo Lula pode ser considerado antissemita, como muitos acusam, por ter deixado a IHRA?
Novamente: não é meu papel aqui, e não é produtivo para o debate, fazer qualquer tipo de manifestação ou de comparação, até porque elas geram consequências.
Eu vejo a saída do Brasil como um erro estratégico. Há tempo para rever a decisão, até mesmo porque eu não fui ainda formalmente desligado como delegado brasileiro [junto à aliança].
O antissemitismo tem crescido de fato no Brasil? É possível afirmar isso de um ponto de vista científico?
Existe a percepção de que o antissemitismo cresce porque as ferramentas que dão visibilidade a esse tipo de discurso se democratizaram e se popularizaram.
Há tentativas dentro da academia, das ciências humanas, de se medir até que ponto ele cresce. O antissemitismo tem características particulares. Mas, por mais que carregue suas peculiaridades, ele está vinculado ao crescimento e à legitimação dos discursos de ódio e de violência como um todo.
Da mesma forma que o antissemitismo cresce no mundo inteiro, também crescem os discursos de ódio e de violência ligados ao racismo, à comunidade LGBT, à misoginia.
Ainda carecemos de estudos mais detalhados para entender de que forma ou quais são esses pressupostos que fazem com que, aí sim, o seu crescimento [do antissemitismo] seja perceptível aos nossos olhos.
A questão é a gente entender se ele realmente cresce em proporções assustadoras ou se é um fenômeno da democratização dos discursos. A minha opinião é que é um conjunto de ambos.
RACISMO REVERSO
O professor Michel Gherman afirmou à Folha que há um risco de o antissemitismo ser usado para endossar a tese do racismo reverso. Para dizer que não apenas os negros, mas também os brancos sofrem racismo, colocando, para isso, os judeus como brancos. O que acha dessa afirmação?
Nas últimas décadas, e principalmente depois da Segunda Guerra, o judeu passou por um processo de "branqueamento", de certa forma, no Ocidente.
Até então, o judeu nunca era visto como branco. Essa é uma discussão a posteriori, que não faz sentido no contexto das perseguições aos judeus, quando eram colocados como raças inferiores porque não eram vistos como brancos.
O combate ao antissemitismo não pode ser feito em função de disputas sobre conceitos de racismo ou de antissemitismo.
É preciso ser dito: a nossa experiência nesses 14 anos no Museu do Holocausto nos mostra que o combate ao antissemitismo, principalmente nos dias de hoje, precisa ser feito de forma conjunta.
De que forma?
Precisamos nos inserir nos debates públicos sobre tolerância e racismo. Precisamos ser mais uma voz na sociedade que luta contra o preconceito. Precisamos, sim, nos engajar em outras lutas, até para que a gente receba o engajamento de outros grupos, de outras minorias, na luta contra o antissemitismo.
Sabe aquela frase que ouvíamos? "Ai, lá vem os judeus de novo falarem sobre o Holocausto, ninguém aguenta mais"? No museu isso não acontece porque estamos sempre ao lado do Ministério Público, da universidade, de um coletivo identitário. E tem sempre alguém junto com a gente.
Qual é a contrapartida? É a gente se abraçar. Ninguém combate o racismo sozinho.