19.08.25 | Mundo

“Israel existe porque se lembra”

Em artigo no Zero Hora desta terça (19), o jornalista Gabriel Sant'Ana Wainer afirma que “o trauma do 7 de outubro escancarou o que já se sabia: a vida em Israel é feita de sobrevivência, mas também de memória”. “É uma sociedade que entende o luto não como paralisia, mas como disciplina. ‘Lembrar para não esquecer’ não é um slogan, é um modo de vida”. Leia a seguir a íntegra do texto:

Estou, desde a última sexta-feira (15), em Israel.

Vim pra cá para compreender melhor as complexidades da sociedade israelense sobretudo diante do que aconteceu — e vem acontecendo — desde o dia 7 de outubro de 2023, quando a vida de todos, israelenses e palestinos, mudou pra sempre.

A primeira sensação é física: ouvir o barulho de bombas. Angustiante, visceral, impossível de traduzir em palavras. Do mirante em que estive em Sderot, dá para enxergar a olho nu o norte de Gaza reduzido a escombros. É como se a destruição tivesse virado parte da paisagem.

Israel é um país que vive em estado permanente de contradição. Uma sociedade fragmentada em espectros políticos, religiosos e ideológicos que dificilmente caberiam sob o mesmo teto, mas que compartilha, como nenhum outro povo, a convicção de que sua existência enquanto nação não pode estar em jogo.

Essa talvez seja a diferença mais gritante em relação a quase todos os outros países: a divergência é profunda, o debate é feroz, mas a unidade mínima nunca se rompe. Direita, esquerda, religiosos, seculares, todos carregam a mesma bandeira. Não por acaso, em qualquer manifestação — seja contra o governo ou a favor dele — as cores azul e branca tremulam lado a lado. O símbolo da nação antecede a disputa.

O trauma do 7 de outubro escancarou o que já se sabia: a vida aqui é feita de sobrevivência, mas também de memória. Cada ferida é ritualizada, transformada em memorial, em lembrete físico de que esquecer seria permitir que o horror se repita. A pedra, o concreto, o ferro retorcido, os carros queimados: tudo vira testemunho. É uma sociedade que entende o luto não como paralisia, mas como disciplina. “Lembrar para não esquecer” não é um slogan, é um modo de vida.

E é nesse ponto que a complexidade israelense se mostra mais evidente. É um país onde mães que perderam os filhos no exército continuam defendendo o direito e o dever de proteger o Estado. Onde comunidades de esquerda, solidárias à causa palestina, viram seus bebês e idosos assassinados e ainda assim recusam a lógica da vingança como destino. Onde o trauma coletivo não anula a pluralidade, mas a reorganiza em torno de um eixo inegociável: a sobrevivência de Israel.

Israel ensina que não há espaço para ingenuidade histórica

Do lado de fora, muitos ainda tentam explicar o Hamas como resistência. Mas a realidade é que não existe causa política ou nacional que justifique o estrangulamento de um bebê. Não existe dignidade em transformar a barbárie em bandeira. Essa clareza, que em outros lugares se esconde atrás de relativismos, aqui se impõe de forma cruel e definitiva.

Israel ensina que não há espaço para ingenuidade histórica. O que está em jogo não é apenas um território, mas a própria possibilidade de existir. E é por isso que, mesmo entre discordâncias abissais, mesmo diante de um governo impopular e de um sistema político dificílimo de entender sob a ótica ocidental, o país segue erguendo bandeiras, memoriais e exércitos.

O futuro permanece incerto, como sempre esteve. Mas se há algo que a história dessa sociedade prova, é que a vida aqui nunca se organiza em torno do medo — organiza-se em torno da resistência, da memória e da obstinada convicção de permanecer.


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