20.08.25 | Brasil
“A perversidade da diplomacia do silêncio“
Em artigo publicado nesta quarta (20) no jornal O Estado de S.Paulo, a jornalista Sheila Leirner comenta a decisão do governo brasileiro de retirar o País da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) e afirma que a iniciativa “têm mais a ver com um projeto ideológico”. “(Com a decisão), o País consolida uma guinada diplomática hostil e ideológica que nos aproxima de regimes autoritários antissionistas e revisionistas históricos, como Irã, Venezuela, Rússia e alguns países árabes. Caminha em direção contrária aos países democráticos ocidentais que consideram o combate ao antissemitismo um valor inegociável”. Leia a seguir a íntegra do texto:
No dia 23 de julho, o governo brasileiro abraçou a ação movida na Corte Internacional de Justiça pela África do Sul, que acusa Israel de genocídio, processo que muitos juristas consideram politizado e juridicamente inconsistente. Tanto que, no primeiro julgamento, em janeiro, o tribunal apenas ordenou que Israel restringisse seus ataques a Gaza. E, em maio, só exigiu que o país encerrasse sua ofensiva militar na cidade de Rafah. Em nenhum momento o Estado hebreu foi julgado “genocida”, evidentemente.
No dia seguinte, o Brasil retirou-se da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), organização que reúne mais de 30 países comprometidos com o combate ao antissemitismo, memória, educação e pesquisa sobre o nazismo. Não é novidade. Já em 2023, o governo Lula mostrou, discretamente, a intenção de não renovar sua participação. Ainda que o Itamaraty negue a relação entre esses dois gestos concomitantes, significativos e hostis, a coincidência das datas e o contexto político tornam a alegação pouco crível e, talvez, até mesmo desonesta.
Também os dois únicos argumentos apresentados para justificar a saída da IHRA soam como desculpas esfarrapadas. Tanto que a deputada Tabata Amaral (PSB-SP) cobrou explicações ao ministro Mauro Vieira e, quase um mês depois, ainda não há resposta.
As “razões” não parecem “erros diplomáticos”. Têm mais a ver com um projeto ideológico que, como todo plano que se baseia na negação do outro, carrega em si o germe da violência. Veja-se, por exemplo, a justificativa da “adesão displicente durante o governo Bolsonaro”, alegada pelo Ministério das Relações Exteriores. Pretexto frágil e sintomático de uma ojeriza ideológica, por mais justificada que seja. Se foi caso de “displicência”, por que não propor uma reformulação da participação brasileira, em vez de abandonar a Aliança?
A desculpa “financeira” é das mais cínicas. Os países observadores da IHRA pagam uma contribuição mensal de 833,33 euros (R$ 5.290,99), irrisória para um país com o Orçamento do Brasil, em comparação com as despesas inúteis de seu governo. Trata-se de uma cota-parte simbólica para um dever civilizatório que não tem preço. É absolutamente prioritário, sobretudo neste momento de conflito, em que o ódio corre à solta.
Com efeito, há críticas legítimas à aplicação excessiva ou distorcida da definição de antissemitismo da IHRA, sobretudo se é usada para silenciar pareceres genuínos sobre a política israelense. No entanto, sem dificultar opiniões, é a única capaz de integrar as novas formas deste racismo que, hoje, não raro se disfarça sob um “antissionismo militante”. Da mesma forma, impede que se repita ou banalize os abomináveis padrões históricos antissemitas.
Se o Brasil discordasse da significação estabelecida pela IHRA, também poderia ter permanecido como membro-crítico e atuante, sugerindo emendas e contribuições. Nada, absolutamente nada, pode justificar o abandono completo da Aliança. Essa escolha não é neutra e o momento atual amplifica seu significado.
Desde que o presidente Lula comparou a guerra contra o Hamas ao nazismo, deu apoio unilateral à Autoridade Palestina e, indiretamente, ao grupo terrorista – ignorando os milhares de mísseis lançados sobre civis israelenses, o pogrom de 2023, os reféns e eventos-chave da memória do Holocausto –, suas relações com o Estado hebreu deterioraram-se profundamente.
Agora, ele consolida uma guinada diplomática hostil e ideológica que nos aproxima de regimes autoritários antissionistas e revisionistas históricos, como Irã, Venezuela, Rússia e alguns países árabes. Caminha em direção contrária aos países democráticos ocidentais que consideram o combate ao antissemitismo um valor inegociável. Assim como foi o Brasil há algumas décadas, mas que hoje rebaixa sua diplomacia a um sistema de ideias sustentadas por um grupo que só defende seus próprios interesses e compromissos políticos.
É difícil não ver aqui uma forma indireta e sutil de negacionismo. Não uma rejeição explícita da realidade, feita por discursos neonazistas, porém o negacionismo contemporâneo, que opera por meio de gestos diplomáticos ambíguos, silêncios ruidosos e pactos não assinados. Uma espécie de apagamento simbólico da memória, que não nega o Holocausto com palavras, mas o relativiza perversamente com ações.
Ora, a jurisprudência brasileira já reconheceu – no caso do editor Siegfried Ellwanger, condenado em 2003 pelo Supremo –, que negar, minimizar ou justificar o Holocausto pode constituir crime de racismo. Há projetos de lei como o PL 4974/2020, que propõem pena de reclusão, como ocorre na França, Alemanha, Áustria e outros países. Dormem no Congresso, enquanto discursos oficiais, que se dizem “humanistas”, aplicam dois pesos e duas medidas, esvaziando de sentido o princípio universal dos direitos humanos.
Abandonar a IHRA é também renunciar a esse princípio. A Shoá, verdadeiro genocídio de 6 milhões de seres humanos, não é uma lembrança pretérita; é um alicerce da consciência moral contemporânea. Quando uma nação abdica da memória dos crimes do passado, ela corre o risco de se tornar cúmplice dos crimes do presente. Trata-se apenas de saber em que lado da história o Brasil escolhe estar.
Sheila Leirner é jornalista, escritora, crítica de arte, foi curadora-geral da 18ª e da 19ª Bienais de São Paulo