15.10.25 | Brasil

“Distribuição do ônus da prova no âmbito da cadeia de custódia da prova digital”

Em artigo no site Conjur, os advogados André Bialski e Raphael Kignel comentam o artigo 158-A do Código de Processo Penal, que define a cadeia de custódia da prova como o conjunto de procedimentos adotados para documentar a história cronológica do vestígio. “Embora isso seja aplicável tanto a vestígios materiais quanto imateriais, a preservação e a documentação sobre o manuseio de evidências digitais despertam preocupações adicionais próprias”. Leia a seguir a íntegra do texto:

O artigo 158-A do Código de Processo Penal define a cadeia de custódia da prova como o conjunto de procedimentos adotados para documentar a história cronológica do vestígio, permitindo o seu rastreio desde o reconhecimento até o descarte (artigo 158-B, I a X). Embora isso seja aplicável tanto a vestígios materiais quanto imateriais, a preservação e a documentação sobre o manuseio de evidências digitais despertam preocupações adicionais próprias (1).

Afinal, enquanto, de um lado, “a estrutura peculiar do dado digital engendra a ilusão de que o que é digitalmente representado é indiscutível” [2], de outro, o vestígio virtual é profundamente marcado pela sua alta volatilidade e suscetibilidade à manipulação [3]. Ainda assim, grande parcela das cortes têm manifestado certo ceticismo em relação à obrigatoriedade, ao rigor e aos efeitos da quebra da cadeia de custódia da prova digital, relativizando garantias e permitindo que elementos cuja autenticidade não foi comprovada sirvam para subsidiar condenações criminais.

É nesse contexto que as posições firmadas pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos têm sido recebidas com enorme satisfação pela comunidade jurídica. A mais recente de que se tem notícia, manifestada no julgamento do AgRg no HC nº 943.895/PR [4], pretende responder à seguinte indagação: como se dá a distribuição do ônus da prova no âmbito da cadeia de custódia do vestígio digital? A resposta a essa questão reclama um aprofundamento mínimo em questões teóricas e práticas.

Ônus da prova

Do ponto de vista teórico, é amplamente reconhecido que, no processo penal, o encargo de provar a autoria, a materialidade e os pressupostos típicos do crime recai sobre a acusação, decorrência natural do princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF/88) e do sistema acusatório vigente [5].

Nesses termos, seja o dado digital destinado a comprovar se houve uma situação típica, quem dela participou ou como para ela contribuiu, nada mais razoável que a parte interessada forneça ao Poder Judiciário e à defesa os meios necessários para conhecer e contraditar não apenas a prova, mas também os procedimentos técnicos dispendidos para a sua preservação [6], desde o reconhecimento até o descarte [7]. Portanto, não condiz com os fundamentos de um processo penal constitucional relegar à defesa o ônus de provar a quebra da cadeia de custódia do vestígio digital, pois, se é dever do órgão acusatório reunir provas suficientes à responsabilização penal, é do seu interesse que esses elementos estejam acompanhados da documentação comprobatória de sua autenticidade e confiabilidade.

á do ponto de vista prático, não é simples para a defesa impugnar a autenticidade do vestígio digital, especialmente se o problema não está no comprometimento de determinada etapa (coleta, processamento, armazenamento etc.), mas sim na completa inexistência de documentação comprobatória da cadeia de custódia. Isso porque, na maioria das vezes, a única pessoa que tem contato direto com a fonte da prova (celular, notebook, tablet etc.) é o perito ou o investigador; à defesa costuma ser franqueado apenas o acesso aos dados já extraídos desses aparelhos.

Assim, se a autoridade estatal não documenta a “história cronológica do vestígio” (artigo 158-A do CPP) — as fases da cadeia de custódia —, como poderia o particular contestá-la? Como poderia o investigado ou o acusado impugnar um dado digital sem nunca ter manipulado o hardware ou o software e sem ter conhecimento sobre quando e de que forma estes foram manipulados por terceiros [8]?

Não é à toa que a Portaria Senasp nº 82/14, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, garante que “o agente público que reconhecer um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial fica responsável por sua preservação” (item 1.3) [9].

Demonstração do prejuízo

Não bastasse a inversão do ônus da prova, existe ainda um segundo desafio imposto à defesa: a necessidade de demonstração do prejuízo decorrente do comprometimento das etapas previstas no artigo 158-B do CPP. [10] Isso porque, ao elaborar o artigo 563 do mesmo diploma, o legislador optou por adotar o princípio “pas de nullité sans grief”, segundo o qual não haverá nulidade se do ato nulo não resultar prejuízo.

Contudo, em se tratando a quebra da cadeia de custódia de uma nulidade absoluta — na medida em que viola norma de interesse público com fundo constitucional [11] —, o prejuízo é presumido, não provado. [12] De fato, a conjugação dos artigos 158-A e seguintes do CPP com o artigo 5º, LVI, da CF/88 (“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”) não deixa dúvida de que a inobservância dos procedimentos técnicos para registro da “história cronológica da prova” resulta em violação de regra constitucional sobre o processo [13]. Logo, nesses casos, o prejuízo é presumido pelo próprio ordenamento — o que não significa ser dispensado —, não sendo necessário que a parte o demonstre.

Agravo Regimental no HC nº 943.895/PR

No julgamento do AgRg no HC nº 943.895/PR, precedente que impulsionou este breve ensaio, os desafios expostos foram solucionados. Em apertada síntese, a tese reafirmada foi a de que “o Estado tem o ônus de comprovar a integridade e confiabilidade das provas apresentadas”, sendo que “a ausência de documentação da cadeia de custódia torna a prova inadmissível no processo penal”. Noutras palavras, foi decidido que a comprovação da observância da cadeia de custódia da prova cabe aos órgãos persecutórios do Estado, e não à defesa, a quem, na maioria das vezes, não é sequer franqueado acesso à fonte do vestígio digital.

Não havendo preservação da cadeia de custódia por parte do Estado, ou não havendo documentação comprobatória da confiabilidade do dado digital, a prova torna-se inadmissível no processo penal.

Conclusão

Extrai-se do AgRg no HC nº 943.895/PR que a lógica processual penal mais condizente com a Constituição e com o sistema acusatório hoje expressamente vigente (artigo 3º-A do CPP) exige que o ônus da prova da observância da cadeia de custódia do vestígio digital seja atribuído ao Estado – nas figuras da polícia e/ou do Ministério Público, a depender do tipo de procedimento investigativo — enquanto órgão responsável tanto pela investigação quanto pela acusação. Trata-se de mais um compromisso da 5ª Turma do STJ em não permitir que um tema tão sério, relevante e presente como a cadeia de custódia, especialmente da prova digital, seja objeto de relativizações incompatíveis com os princípios da presunção de inocência e da vedação ao aproveitamento de provas ilícitas.

[1] No AgRg no HC nº 828.054/RN, foi destacado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que as provas digitais, “em razão de sua natureza facilmente – e imperceptivelmente – alterável, demandam ainda maior atenção e cuidado em sua custódia e tratamento” (STJ, AgRg no HC nº 828.054/RN, 5ª Turma, rel. min. Joel Ilan Paciornik, j. 23.04.2024, DJe 29.04.2024).

[2] Brighi, Raffaella; Ferrazzano, Michele. Digital forensics: best practices and perspective. In: Caianiello, Michele; Camon, Alberto. Digital forensic evidence: towards common European standards in antifraud administrative and criminal investigations. Milano: CEDAM, 2021, p. 14. Tradução de Geraldo Prado em Fundamentos teóricos e normativos das provas digitais.

[3] Prado, Geraldo. A cadeia de custódia da prova digital: desafios decorrentes das novas tecnologias. Homenagem ao ministro Rogerio Schietti. Coordenação: Benedito Siciliano, Cristiano Verano e Ademar Borges. 1ª Ed. Ribeirão Preto: Migalhas, 2023, p. 394.

[4] STJ, AgRg no HC nº 943.895/PR, 5ª Turma, rel. min. Joel Ilan Paciornik, j. 3/9/2025, DJe 08.09.2025.

[5] “Se há um dever do Estado de instaurar e preservar a cadeia de custódia das provas, trata-se de um imperativo vinculado ao direito de defesa e à presunção de inocência” (Prado, Geraldo. A cadeia de custódia… op. cit., p. 389).

[6] Conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, “não é possível (…) garantir a idoneidade dos dados recolhidos pela autoridade policial, nem tampouco a higidez da cadeia de custódia do material apreendido (…) impede a realização de eventual contraprova, em claro malferimento dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório” (STF, segundo AgRg no ARE nº 1.343.875/RJ, 2ª Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 8/8/2022, DJe 14/9/2022).

[7] “(…) a  desincumbência  do  ônus  probatório  deverá  ocorrer com a comprovação de que todas as etapas e métodos da cadeia  de  custódia  foram  cumpridas  (arts.  158-B  a  158-F). É  o  que  se  caracteriza  como  dimensão  processual  da  cadeia  de  custódia,  através da qual é criado um ônus à acusação (…)” (Figueiredo, Daniel Diamantaras de; Sampaio, Denis. Cadeia de custódia: ônus da prova e direito à prova lícita. Boletim IBCCRIM, [S. l.], v. 29, n. 338, 2024, p. 13).

[8] Conforme pontuado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no AgRg no HC nº 143.169/RJ, na prática, “o perito policial afirma somente ter ‘encontrado’ arquivos suspeitos e cola fotos de alguns deles longamente em seus laudos, mas o ponto principal – o como tais arquivos foram obtidos, tratados e tiveram sua autenticidade aferida – é omitido” (STJ, AgRg no RHC nº 143.169/RJ, 5ª Turma, rel. min. Ribeiro Dantas, j. 7/2/2023, De 2/3/2023).

[9] Portaria SENASP nº 82, de 16 de julho de 2014, DOU 18/7/2014.

[10] “Ademais, importante destacar que a jurisprudência desta Corte Superior se firmou no sentido de que (…) vigora o princípio pas de nulité sans grief, previsto no art. 563, do CPP, segundo o qual, o reconhecimento de nulidade exige a comprovação de efetivo prejuízo” (STJ, AgRg no ARE nº 1.847.296/PR, 5ª Turma, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 22/6/2021, DJe 28/6/2021).

[11] Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1.012.

[12] Desafiando o entendimento majoritário da doutrina, a jurisprudência não costuma fazer qualquer diferenciação entre nulidade relativa e absoluta, demandando sempre a demonstração do prejuízo. Confira-se, por exemplo, a Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal: “no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.

[13] “As garantias constitucionais de conteúdo processual não devem ser vistas apenas sob a ótica individualista, (…) havendo evidente interesse público na sua observância. Contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação das decisões, publicidade dos atos processuais, presunção de inocência, vedação das provas ilícitas são, em última análise, garantias de um processo justo e équo” (Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 805).

André Bialski é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGVSP) e sócio do escritório Bialski Advogados Associados.

Raphael Kignel é advogado criminalista, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGVSP) e sócio do escritório Kignel Advogados.


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