01.07.22 | Cultura
“Eu consigo me manter viva através da minha voz”, diz Fortuna, ao falar da emoção que sente ao cantar Hatikva
A cantora Fortuna (Fortunée Joyce Safdié) tem uma trajetória musical de mais de 30 anos. Ela se destaca por estabelecer pontes entre sua música, de raízes judaicas, e diversas religiões e culturas do mundo. Dona de quase uma dezena de discos gravados e uma coleção de elogios da crítica especializada (Mediterrâneo, por exemplo, venceu o 10º Prêmio Sharp de Música como melhor disco produzido em língua estrangeira), Fortuna, que desde 2020 vem desenvolvendo a atividade de chazanit (cantora litúrgica) conversa com a CONIB sobre música, judaísmo, tradições, e aceitação. Confira.
Origens e formação
Eu vim de uma família linda que tem origem em Alepo, na Síria. Uma comunidade muito bonita, muito musical, mas muito fechada. Hoje, 6 de maio, seria aniversário do meu pai e gostaria de dedicar essa entrevista a ele, Edmund Safdié. Uma comunidade muito bonita, muito musical que guarda valores essenciais do judaísmo. Eu, como mulher, tive muita dificuldade, porque sempre senti que música e voz me conectam profundamente com essa ancestralidade. E na época foi muito difícil romper com as barreiras de uma comunidade judaica árabe do Oriente Médio, que trazia valores mais fechados, mais tradicionais. Foi difícil seguir o meu caminho. Hoje canto como cantora litúrgica na Sinagoga Beth El, como chazanit, com o rabino Nilton Bonder e na Kahal Zur Israel, em Recife. Empreender este movimento, ser aceita neste lugar pelos meus pais e pela comunidade foi difícil. E nos seus últimos anos, meu pai se encantou e me apoiou. Esse foi o meu percurso e foi complexo. Romper com este estigma e chegar neste lugar. Na minha casa, a gente fala francês, eu ouvi muito árabe e minha mãe é argentina. Eu convivi com essas línguas na minha educação desde pequena. Passei muito tempo com meus avós, em Buenos Aires. Eram muito afetivos. Minha avó nasceu em Manchester. Meu avô nasceu no Haiti porque os pais dele trabalhavam na rota da seda e o Haiti era um destino de interesse. Então eu nasci nesse caldeirão de influências e isso foi muito enriquecedor na minha vida. Meu pai ouvia música francesa, árabe… Essa é a minha origem toda a influência da World Music veio de casa mesmo.
Prática judaica
Na verdade, a minha conexão sempre foi pela música. A gente respeitava as festas, como uma família judaica tradicional sefaradita. Não necessariamente, eu sentia o poder de oração na sinagoga. Sentia fora também. Eu ia na sinagoga e ouvia o canto daquela tribo de homens que canta e faz nossa alma ir para outro lugar. É comovente. No shabat a gente se reunia, fazia o kidush. Isso me alimentou afetivamente. Este lugar familiar de estar junto. Ao longo dos anos, cada um foi morar em um lugar diferente e isso acabou se perdendo. Hoje eu pratico isso na minha família.
Escolha profissional
Antes de ser cantora litúrgica, entre outras coisas, comecei a fazer teatro e dança, inclusive na Academia Rubin, em Jerusalém. Fiz teatro aqui com o Antunes Filho, com o José Renato, participei de Rasga Coração e também de Phedra 80. Participei de diversas montagens onde era chamada especialmente por causa da minha voz. Fiz um teste no Teatro Itália com o maestro John Neschling para Rasga Coração e ele me aceitou na hora. Foi muito legal. Nos anos 1990, fui morar em Israel, depois em Paris e lá já senti que a influência das tradições musicais do mundo era muito mais forte, porque estava em uma cidade onde se vê de tudo. Aí comecei a me aprofundar na música celta, cigana, da África, nas músicas do mundo. Era uma paixão e virou trabalho. Fui trabalhar em rádio coisa que fiz por mais de 20 anos. Desde 2019 não estou mais no rádio, meu último trabalho, por 12 anos, foi na Rádio Cultura FM onde tinha o programa Todos os Cantos, um programa prestigiado. E foi muito bacana. Trabalhei também na Eldorado e na Rádio Uol.
Chamado para a liturgia
Eu queria contar como foi o chamado para cantar liturgia, não só judaica. Um dia fui à Sinagoga Spanish & Portuguese, em Nova York. Comprei um livro de salmos e o Cântico dos Cânticos, na lojinha. Sentei no Central Park e li: Ani le Dodi ve Dodi li. Eu para o meu amado e meu amado para mim, em hebraico (que é o outro, mas também é HaShem) e me veio imediatamente a melodia. E comecei a compor com vários textos litúrgicos: fiz o meu Shemá, as minhas aleluias, fiz diversas músicas neste contexto de reconexão através da minha voz do texto bíblico com a presença espiritual. E veio um anseio forte, eu estava com a minha primeira filha na barriga, e tive uma visão de que aquilo não seria só dentro da minha comunidade. Que poderia ser vivenciado com outras culturas. Naquela época eu era diretora artística do festival Todos os Cantos do Mundo, do Sesc. Eu trouxe grupos de diversos lugares: da Sibéria, de Botsuana. Um dia fui gravar um álbum, chamado Mazal. De repente, me chega um cartão postal de Dom Geraldo Gonzales da Ordem de São Bento e dizia algo como: “gostaria de dizer que o seu canto toca em nosso mosteiro todos os domingos e em todas as nossas festividades”. “E eu, apesar de ser monge beneditino, tenho uma origem sefaradita e me identifico com seu canto”. Eu fui atrás dele, e não foi muito fácil. Na minha vida nada foi muito fácil. Só na aparência é que parece fácil. Ninguém faz ideia do quanto eu batalho. E isso foi o início de uma relação que incluiu Monges de Itapecerica da Serra a monges do Mosteiro de São Bento. Adoro cantar com monges beneditinos.
Dificuldades e preconceitos
É engraçado e triste ao mesmo tempo. Sempre tentei fazer uma transcendência no meu caminho. E transcendência para mim é diálogo, a possibilidade de entrelace com o outro. Acho que nosso mundo está cada vez menos humano e é um grande desafio ser humano hoje. Eu sempre dialoguei e tentei fazer pontes com outras culturas, religiões, povos e várias vezes sofri muito preconceito. Uma vez eu fiz uma trilha sonora e algumas pessoas optaram por não participar deste trabalho por eu ser judia. É muito complexa essa realidade de artista. As pessoas acham que tudo muito fácil e não é. Quero contar uma coisa que me toca muito. O povo judeu é um povo plural. A música judaica recebe influência da Europa central, do Leste europeu, com todo o iidísche, da música cigana. Depois a música judaica tem influências sefaraditas, dos judeus originários da Peninsula Ibérica. Depois, todas as influências dos judeus orientais, de onde eu venho, da música árabe, do Oriente Médio. A gente já nasce plural, com essa convivência, com vários recortes.
Legado judaico
Santo de casa não faz milagre. Minhas filhas são mais conservadoras que eu, têm outra linha de pensamento e a gente se respeita. Estão no final da adolescência. O que gosto é que quando rezam, elas tem kavanah (intenção), o sentido da espiritualidade. Elas estabelecem essa conexão. No último Yom Kipur, estava online com o Rabino Nilton Bonder da CJB e estávamos no serviço e eu pedi para elas estarem comigo, porque estava sozinha. E elas ficaram comigo. Elas estavam com o livro rezando, do jeito delas e eu toda plugada, com fone de ouvido, luz pedestal, outra pegada. Mas quando paro e olho acho que tá certo.
Eu consigo me manter viva através da minha voz, é a forma que tenho de estabelecer uma conexão, comigo, com o outro, com você, com Hashem e com a minha missão. Foi difícil assumir a minha voz e hoje eu cuido dela e ela cuida de mim.
Trabalho com crianças
Tive um parceiro de trabalho, de vida, de alma, o Iacov Hillel, e ele nos deixou recentemente, na pandemia. Foi com ele que comecei a cantar em ladino. Ele também era sefaradita, de origem romena. Em 1992, aconteceu algo muito precioso. Fui acompanhar meu pai a Israel. Eu fui cantar MPB. Para quem não sabe, fui vocalista do Chico Buarque, cantei com Toquinho, fui parceira do poeta Paulo Leminski, uma figura que tinha grande admiração pela cultura judaica. Eu estava em Israel e fui ao Museu da Diáspora. Entro no museu e começa acontecer uma coisa comigo, uma conexão imediata, que nem naquele dia em que fui ao Central Park. Vi uma vitrine com dois sapatinhos muito gastos de uma criança da Bulgária e tinha uma música tocando no fundo. Era uma série de canções de ninar. E dali nasceu La Prima Vez. Estou falando de vários assuntos, comecei com o Iacov, fizemos vários espetáculos até o encontro com os monges beneditinos e ele me chamou para fazer o espetáculo José e seu manto technicolor, que atraiu muitas crianças. Depois fiz uma parceria com o Selo Sesc e junto com o Hélio Ziskind, fizemos um trabalho com a obra da Ruth Rocha, da Tatiana Belinky, melodias do mundo, e meu último trabalho com Paulo Tathy, Felipe Edmo e Pedro Bandeira, fiz o projeto Roda de Todo o Canto.
Emoção com Hatikva
Por incrível que possa parecer, é o Hatikva (que me emociona como judia). Sempre que eu ia nas cerimônias da escola das minhas filhas e tocava o Hatikva, eu queria cantar, soltar o gogó e não podia. Eu me sentia tão oprimida. Tinha que guardar. Esta é uma música sobre esperança. E esta música me faz chorar. Essa esperança que está em Hatikva é algo que a gente deve manter aqui, no espaço de cada um de nós, da nossa alma, e essa música me ajuda a reiterar isso. Porque é algo desafiador, sermos humanos. Assistirmos a tudo que acontece na condição humana, às vezes exige muita tikvá, esperança, e é desse lugar que eu adoro cantar.