01.11.23 | Mundo
“O dilema do cantil d’água”
Em artigo no jornal O Estado de S.Paulo, o rabino Michel Schlesinger aborda uma passagem da literatura judaica clássica que traz um desafiador dilema ético. “Se você estivesse perdido no deserto com mais uma pessoa e encontrasse um cantil com água suficiente apenas para um dos dois, o que você faria? Se você entregar o cantil, a outra pessoa sobreviverá e você não. Se você beber, o outro indivíduo perecerá. Se vocês dividirem a água, ninguém sobreviverá. O que fazer?”. Diz o artigo:
A guerra que eclodiu no dia 7 de outubro, quando o grupo terrorista Hamas matou mais de 1.300 civis em Israel, impõe dilemas éticos brutais não apenas a israelenses e palestinos – que convivem com o risco iminente de morte –, mas a todos nós.
O Direito Internacional Humanitário carrega dois princípios básicos expressos em latim. O primeiro deles, jus ad bellum, determina as circunstâncias nas quais uma guerra se justificaria, quando uma guerra seria ou não legítima. O segundo, jus in bello, estabelece o modo como uma guerra deveria ser conduzida.
Embora guerras tenham sido travadas com o objetivo de expandir territórios ou defender a moral de determinados povos, a guerra considerada legítima é aquela que ocorre no exercício da autodefesa. Quando um país é atacado, seus cidadãos são torturados, feridos, mortos e sequestrados, o Direito Internacional reconhece a legitimidade da guerra, ou do jus ad bellum.
Na literatura judaica clássica, existe um conceito semelhante. O Talmude define a diferença entre guerra facultativa e guerra obrigatória. De acordo com a obra composta 2 mil anos atrás, o direito à autodefesa não apenas justifica uma guerra, mas faz com que o País atacado tenha o dever de se defender.
Independentemente do motivo que desencadeou a guerra, ela precisa ser conduzida de forma ética. O jus in bello determina que os civis sejam protegidos em qualquer circunstância, mesmo quando se trata de uma guerra absolutamente legítima.
Esse conceito também está presente na tradição milenar judaica. O rabino Moses Maimônides (1138-1204) afirmou o seguinte: “Quando um cerco é realizado em torno de uma cidade, esta nunca deveria ser rodeada pelos quatro lados, mas somente por três. Uma abertura precisa ser mantida para que os civis possam sair com vida”. A ideia de um corredor humanitário era defendida pelo filósofo espanhol.
A guerra entre Israel e Hamas apresenta diversos elementos de complexidade. Os mais de 200 reféns de Israel mantidos entre a população civil palestina dificultam a criação de um corredor humanitário e, ao mesmo tempo, fazem do resgate desses israelenses uma obrigação moral e política. “O resgate de prisioneiros é uma prioridade porque os reféns têm fome, sede, são mantidos nus e correm ricos de vida imediato”, afirmou também Maimônides.
“Pessoas que estão pedindo um cessar-fogo imediato não entendem o Hamas”, disse Hillary Clinton em entrevista veiculada pela rede de televisão CBS. De acordo com a ex-secretária de Estado norte-americana, “este seria um presente para o Hamas, que aproveitaria a oportunidade para reconstruir seu arsenal e se fortalecer”.
Em minha tradição religiosa, assim como nas demais de que tenho conhecimento, há incontáveis passagens pacifistas. “A Torá inteira existe com o único propósito de promover a paz” (Provérbios 3:17), por exemplo. Eu acredito na paz e na convivência harmoniosa entre os povos. Portanto, busco me inspirar nos ensinamentos que apregoam a busca incessante pela paz. Ao mesmo tempo, compreendo com muita dor que, enquanto houver reféns nas mãos do grupo terrorista Hamas, Israel tem o dever de se fazer dos meios necessários para trazer estes civis para casa e desmantelar a estrutura terrorista do Hamas.
Com relação à pergunta inicial deste texto, o Talmude estabelece que, se existe água para que apenas um indivíduo sobreviva, neste e somente neste caso, você deve beber para salvar sua própria vida, mesmo sabendo que outros não terão a mesma sorte. No entanto, desta mesma passagem se apreende que, sempre que houver alguma chance de proteger sua própria vida e também a vida de outra pessoa, esse objetivo deve ser perseguido de todas as maneiras possíveis.
A guerra que estamos testemunhando, com muita tristeza e preocupação, não é uma guerra entre judeus e muçulmanos, tampouco entre israelenses e palestinos. A guerra que está ocorrendo agora é uma guerra entre o Estado de Israel e o grupo terrorista Hamas. Os palestinos são vítimas do Hamas, que, no lugar de protegê-los, os utiliza como escudos humanos, não obstante o apoio da população ao grupo terrorista aumentar em momentos de conflito. De todo modo, mesmo sendo esta uma guerra legítima, mesmo tendo Israel o dever de resgatar imediatamente seus reféns, permanece o dever de poupar todas as vidas humanas que puderem ser poupadas. Nenhuma vida é mais valiosa do que outra. E quero acreditar que, apesar da aridez daquela região, existe água no cantil para ambos os povos.