21.01.25 | Brasil

“Lições sobre antissemitismo”

Em artigo em O Globo os advogados Cláudio Finkelstein, Daniel Kignel, Fernando Lottenberg e Natalie Sequerra comentam outro artigo em que o professor Ronaldo Porto Macedo Junior defende alunos da USP que enfrentam processo disciplinar (PAD) por suposta manifestação antissemita e discurso de ódio. Segue a íntegra do texto:

Em artigo publicado na coluna Fumus Boni Iuris, em O Globo, no último dia 17 de janeiro, o professor Ronaldo Porto Macedo Júnior, da Faculdade de Direito da USP, busca descaracterizar o antissemitismo contido em ata de assembleia de alunos da USP — que justifica o assassinato de judeus no ataque de 7 de outubro de 2023, caracterizando-o como “retomada histórica” — com base na liberdade de expressão que deve prevalecer no meio acadêmico.

O autor aborda a situação de três estudantes do curso de Ciências Moleculares da USP e dois de outros cursos contra os quais foi instaurado processo disciplinar (PAD) por suposta manifestação antissemita e discurso de ódio.

O episódio tem origem na assembleia dos estudantes de referido curso, realizada em 10 de outubro de 2023, que resultou em ata cujo conteúdo provocou grande consternação entre muitos leitores, tanto judeus quanto não judeus. O documento começa assim: “Na manhã de sábado, forças palestinas iniciaram uma ofensiva histórica contra o colonialismo israelense a partir da Faixa de Gaza (...)”. Em outro trecho, a ata frisa que “A ofensiva foi histórica e deixou o exército israelense paralisado nas primeiras horas, nas quais diversos assentamentos foram retomados, vários militares israelenses foram feitos prisioneiros”. Considerando que, em Israel o serviço militar é obrigatório, a ata deduz que “não há civis em Israel, menos ainda nas Faixa de Gaza e na Cisjordânia, regiões de assentamentos coloniais mais recentes, extremamente militarizados para garantir o roubo de terra palestina”. Em seu último parágrafo, a ata clama pela luta contra a existência do Estado de Israel dizendo que “É o papel de todo ser humano que se importa com a opressão e a exploração se colocar contra o projeto sionista, contra o colonialismo israelense, contra o Estado de Israel fundado no genocídio e no colonialismo”. A íntegra da ata consta do artigo em questão.

O articulista entende que o conteúdo do documento não passou de críticas ao governo de Israel e de declaração de apoio ao povo palestino, relativizando o ataque ao território israelense e condenando a instauração do processo disciplinar. Para o autor, não houve manifestação antissemita por parte dos alunos, e a interpretação feita por aqueles que se sentiram ofendidos seria uma tentativa de “imposição de uma narrativa” que visava a limitar ou silenciar o debate.

Apesar da clara opinião do professor contida no artigo a respeito do que pode ou não ser considerado antissemitismo, algumas ponderações merecem ser feitas. Para tanto, uma brevíssima retomada dos fatos: no dia 7 de outubro de 2023, o Hamas invadiu o território israelense, assassinando 1.200 pessoas, de 9 meses a 90 anos de idade. Homens, mulheres e crianças judias e não judias foram fuziladas sem distinção, e a utilização de violência sexual como instrumento de guerra tornou-se a marca registrada do grupo terrorista. A quantidade de estupros praticados pelos autores do massacre não pôde sequer ser estabelecida, vez que muitos dos corpos das vítimas foram carbonizados, vivos ou mortos, após os ataques. Ademais, os integrantes do Hamas sequestraram 250 pessoas, incluindo bebês, crianças, adolescentes, mulheres, homens e idosos, inclusive cristãos e muçulmanos, muitos dos quais permanecem aprisionados como reféns em solo palestino.

A ata de assembleia referida pelo professor Ronaldo Porto Macedo Júnior veio a público apenas três dias após estes fatos, em linha com a hostilidade contra judeus que explodiu em diversos países após o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, em especial nos campi dos EUA. O exército israelense mal havia dado início aos preparativos para a incursão terrestre em Gaza. A guerra, efetivamente, não havia começado. Sendo assim, a ata carrega em si o mais puro sentimento antissemita.

Objetivamente, o que se extrai do documento é que os alunos não pouparam esforços e não mediram palavras para glorificar e justificar o assassinato de israelenses, em um ataque terrorista por eles considerado histórico e que, segundo alegam, retomava “terras roubadas” de palestinos, ainda que tal fato se desse mediante estupro, mutilação, incêndio, sequestro e assassinato dentro das fronteiras de Israel. Para os alunos, vez que o serviço militar compulsório em Israel levaria todos os civis à condição de militares, a morte de 1.200 pessoas de forma desumana e monstruosa no ataque do Hamas (incluindo crianças e idosos) não seria considerada sequer crime de guerra.

E, pior, alinhando-se ao antissemitismo mainstream da atualidade, os alunos posicionam-se a favor do fim do Estado de Israel, conclamando todos aqueles que se importam com a opressão a lutarem contra o projeto sionista e contra o Estado “fundado no genocídio e no colonialismo”.

Cabe ressaltar que a retratação genérica, protocolar e superficial dos alunos — possivelmente motivada pelo desejo de evitar consequências jurídicas e acadêmicas — não atenuou a repercussão gravíssima do conteúdo da ata.

Somos (inclusive por profissão) árduos defensores do direito à liberdade de expressão como um dos pilares essenciais da democracia. Contudo, como se sabe, no ordenamento brasileiro (assim como nos de outros países), a liberdade de expressão não é absoluta e encontra limites em outros direitos fundamentais. A Lei 7.716/1989 tipifica como crimes a discriminação e o preconceito de religião ou procedência nacional. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, firmou o entendimento de que manifestações de antissemitismo são crimes de racismo e, como tais, são imprescritíveis e inafiançáveis, conforme o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal. Desse modo, ataques aos judeus por razões religiosas, étnicas ou culturais configuram discriminação vedada pela legislação brasileira. E, não bastasse o fato de manifestações antissemitas não estarem protegidas pela liberdade de expressão, como ressaltado pelo próprio autor do artigo, tais manifestações também são vedadas pelo Regimento Geral da USP.

Nesse sentido, alguns professores da USP destacaram o antissemitismo presente na ata estudantil, a desumanização da comunidade judaica e israelense e a exaltação a um ataque terrorista perpetrado por um grupo que, em seu estatuto, afirma textualmente que não irá descansar até que o último judeu pare de respirar. O articulista, no entanto, entende que não houve manifestação antissemita ou propagação de discurso de ódio nessa manifestação, mas sim “divergências de opinião”, acusando a caracterização do conteúdo da ata como antissemita de ser uma possível “estratégia de censura”. Glorificar o ataque e se opor ao “projeto sionista” é defender o estupro, a execução e o sequestro de cidadãos judeus, além da destruição do Estado de Israel. Se isso não é antissemitismo, mas apenas uma questão de opinião, preocupa-nos o que, afinal, seria antissemitismo ou incitação ao ódio para o professor.

Cabe lembrar que de acordo com a definição de antissemitismo da IHRA — a Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto — da qual o Brasil é membro observador, negar ao povo judeu o direito à autodeterminação, afirmando, por exemplo, que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista, é um dos exemplos do antissemitismo contemporâneo.

Quando judeus apontam o antissemitismo em manifestações, artigos, postagens em redes sociais, entrevistas ou discursos de revisionismo histórico, o que se espera é que lhes seja atribuída a credibilidade que merecem. Outras minorias possuem o direito indiscutível e inalienável de definir aquilo que lhes atinge. Não são os brancos que determinam o que é racismo, assim como não são os heterossexuais que estabelecem o que é homofobia. Da mesma forma, os judeus merecem a atenção devida quando firmam as balizas do que é antissemitismo. Desmerecer seus sentimentos com o argumento equivocado de que, assim agindo, estariam promovendo uma “estratégia de censura”, certamente não é o melhor caminho. Não por outra razão, seguiremos sempre que necessário enfrentando o discurso de ódio e a relativização de nossa história, de nossos desafios, angústias e valores.

Cláudio Finkelstein é professor livre-docente e coordenador da subárea de Direito Internacional na Pós-Graduação da PUCSP;

Daniel Kignel, advogado, mestre em Direito Penal pela FGV-SP, diretor jurídico da Federação Israelita do Estado de São Paulo;

Fernando Lottenberg, advogado, doutor em Direito Internacional Público pela USP, comissário da OEA para o combate ao antissemitismo;

Natalie Sequerra, advogada, mestre em Direito pela Harvard Law School.


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