19.02.25 | Mundo

“Munique é berço de traição da Europa e de seus ideais, como foi com Adolf Hitler”

Em artigo na Folha de S.Paulo desta quarta-feira (19) o historiador Rui Tavares Historiador, deputado na Assembleia da República de Portugal e ex-deputado no Parlamento Europeu, também abordou episódios históricos envolvendo a cidade de Munique como berço de traição à Europa e a seus ideais. Segue o texto:

Em 1938, o premiê britânico Neville Chamberlain voou até Munique, na Alemanha, para se encontrar com Adolf Hitler, em nome da paz. Em nome da paz, ignorou as informações secretas que recebeu sobre a verdadeira natureza do Führer alemão. Em nome da paz, entregou uma parte da Tchecoslováquia, sem pedir opinião aos tchecoslovacos. Em nome da paz, prescindiu da honra. Acabou por ficar — como viria a dizer Winston Churchill, seu sucessor— com a desonra e com a guerra.

Em 2007, na Conferência de Segurança de Munique, Vladimir Putin proferiu um rancoroso discurso contra a ordem internacional herdada do pós-guerra e da queda do muro. Os presentes escolheram ignorar aquilo que os seus ouvidos ouviram e que os seus olhos viram, suplantado pela vontade de acreditar que a história tinha mesmo acabado ou, talvez mais ainda, pelo interesse em fechar negócios vantajosos com Putin.

No ano seguinte, Putin mandou invadir a Geórgia, e o mundo achou que era uma exceção. Seis anos depois dessa invasão, Putin anexou a Crimeia. Mais seis anos decorridos, Putin tentou engolir a Ucrânia inteira e chegar a Kiev em três dias.

Eu sei, eu bem sei, que não faltam pretextos e tentativas de justificação para o que Putin fez. Mas que pensaria o leitor se quem quer que fosse invadisse a Amazônia, sob qualquer pretexto, com qualquer justificativa, qualquer que fosse?

A história poderá vir a dizer muita coisa, mas não dirá certamente que foi a Ucrânia que invadiu a Rússia.

E de novo em Munique, há poucos dias, ficou claro que o plano de Donald Trump para a Ucrânia é entregar —em nome dos ucranianos, mas sem a participação deles— tudo aquilo que Putin tiver conseguido conquistar. E ainda exigir, por cima, que os ucranianos paguem US$ 500 bilhões pelo favor, deixem os Estados Unidos ficarem com metade dos seus minérios raros, mais uma parte da atividade portuária e agrícola do país, pelo menos. Em termos proporcionais, são condições mais duras do que as que foram impostas à Alemanha por ter sido considerada culpada pela Primeira Guerra Mundial.

Para juntar a injúria ao insulto, o vice-presidente americano, J. D. Vance decidiu deixar claro todo o seu desamor pela União Europeia, culpada de nem sequer cogitar em regular as redes sociais americanas, e terminou apoiando o partido extremista AfD a poucos dias das eleições na Alemanha.

Este estado de coisas, de tão indigno, é salutar em pelo menos uma coisa: só engana a si mesmo quem quiser. Para quem quiser enfrentar a realidade, o cenário é bastante claro: a União Europeia e os EUA já não são aliados, a Otan é uma construção meramente teórica, e os europeus terão de recuperar a velha ideia —derrotada em 1954 no Parlamento francês— de construir a sua própria Comunidade Europeia de Defesa.

É bom que o façam rápido, porque a contagem decrescente para a próxima guerra na Europa começa no dia em que Putin não estiver atolado na Ucrânia. Ainda parece incrível, mas é assim a história do meu continente.

Como dizia Rick a Ilsa, em "Casablanca", sonhando com os tempos bons de antes da guerra, "teremos sempre Paris" —para a paixão. Mas para a traição à Europa e seus ideais, nada como Munique.


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