28.04.25 | Mundo
‘Querido irmão’
Em artigo no jornal O Estado de S.Paulo publicado no sábado (26), o jornalista e escritor Henrique Cymerman aborda a sua relação pessoal com o papa Francisco e o posicionamento do pontífice contra o antissemitismo. “Em seu discurso final antes de sua morte, na bênção “Urbi et Orbi”, ele pediu que refletíssemos sobre nossas relações como comunidade global. Clamou pelo fim das guerras na Ucrânia, em Gaza e no Sudão. E também falou sobre os perigos do antissemitismo, que ele enfatizou repetidamente ser ‘um pecado’”. Leia a seguir a íntegra do texto:
Francisco foi um líder excepcional, talvez o último grande líder de um mundo órfão no pior momento possível. Uma voz sensata com visão de longo prazo em meio à nova guerra fria internacional. O palco geopolítico perdeu um de seus líderes mais universais num tempo caótico.
Dois meses após sua eleição, em maio de 2013, Francisco me convidou para Santa Marta, junto com seu amigo, o rabino argentino Abraham Skorka. Perguntou o que poderia fazer por Israel e o Oriente Médio. Sugerimos que sua primeira viagem como papa fosse para a região. Ele aceitou e nos pediu ajuda. Pouco depois, me ligou no celular: “Olá! Aqui é o papa Francisco.” Achei que era uma brincadeira de um amigo argentino e respondi: “E eu sou Napoleão!” O papa caiu na risada: “Sou eu mesmo! Não reconhece minha voz?” A partir desse momento, nosso vínculo se fortaleceu ainda mais.
“Aí vem o homem que me trouxe dois presidentes”, dizia Francisco nos últimos anos de seu pontificado. Durante os últimos anos, nos encontrávamos quase que mensalmente. As conversas, de uma a duas horas, aconteciam sempre em sua residência simples em Santa Marta, fora do protocolo do Vaticano. “Se eu morasse sozinho num apartamento de 500 metros quadrados, enlouqueceria”, dizia. “Preciso de gente ao meu redor.”
Nas conversas, ele analisava a geopolítica mundial e perguntava: “O que podemos fazer neste tempo turbulento?” Após a oração pela paz, ele me deu sua primeira entrevista como papa. Disse que não se sentia bem naquele dia, mas nos levou até seu quarto simples e afirmou: “Você foi o anjo da paz aqui.” Brinquei que não tinha asas. Ele sorriu: “Elas vão crescer, elas vão crescer...”
Francisco tinha um fascínio especial pelo Oriente Médio e por Israel. Um dia perguntou qual eu achava ser a maior conquista do Estado judeu moderno. Respondi que era a ressurreição da língua hebraica. “Papa Francisco, seria como se, a partir de amanhã, toda a América Latina começasse a falar latim.” Ele riu: “De fato, é uma revolução difícil de imaginar.”
Em seu discurso final antes de sua morte, na bênção “Urbi et Orbi”, ele pediu que refletíssemos sobre nossas relações como comunidade global. Clamou pelo fim das guerras na Ucrânia, em Gaza e no Sudão. E também falou sobre os perigos do antissemitismo, que ele enfatizou repetidamente ser “um pecado”.
Nem sempre concordávamos. Quando criticava ações militares de Israel em Gaza, eu expressava respeito, mas debatíamos abertamente. Eu dizia-lhe que a realidade da população civil é trágica, mas foi o Hamas, com seu massacre cruel, quem arrastou as Forças de Defesa de Israel para dentro da Faixa. Uma vez, mostrou um documento da Embaixada Palestina chamando Gaza de “a maior prisão a céu aberto do mundo”.
Respondi que talvez fosse verdade em parte, mas que o carcereiro era o Hamas. Ele ouvia com atenção. Argumentei também que não poderia haver genocídio, pois os dados internacionais indicavam crescimento populacional em Gaza.
Na Israel de hoje, traumatizada pelo 7 de outubro, muitos tiveram dificuldade de compreender o papa Francisco. Alguns líderes ultranacionalistas israelenses tentaram transformá-lo de amigo em inimigo. Em vez de dialogar, o condenaram e até retiraram mensagens de condolência após sua morte. O que não sabem é que Francisco havia deixado clara sua posição: “É legítimo criticar as políticas de um governo, mas quem diz que Israel não tem direito de existir comete o pecado do antissemitismo.”
Certa vez, contei a ele um episódio antissemita que vivi em Portugal, quando criança.
Um padre me proibiu de jogar futebol na igreja por ser judeu. Francisco me disse que, quando era pároco em Buenos Aires, fazia questão de que o goleiro de seu time fosse um menino judeu da vizinhança: “Ele era um péssimo goleiro, mas queria dar uma lição às crianças.” Encontramos esse “menino” em Israel, o nome dele é Daniel Zeidenberg, e foi assim que organizamos uma visita comovente do goleiro judeu do padre Bergoglio ao Vaticano.
Durante 12 anos de encontros regulares, sempre tive a impressão de que ele corria contra o tempo. Frustrava-se com a lentidão da Cúria. Queria resultados rápidos, intervinha pessoalmente e nunca abria mão de seus valores.
Após sua morte, decidi não ir ao funeral. Para mim, o papa Francisco viverá para sempre. Ele costumava me chamar de “Batman” e minha colega, a ativista humanitária israelense Nirit Ofir, de “Robin”, pois, na visão dele, estávamos tentando “salvar o mundo”. Eu respondia que sou um “judeu bergogliano”, que compartilha seus valores e seu desejo de pôr fim ao caos da geopolítica internacional.
Ao longo desses 12 anos, Francisco me escreveu quase uma centena de e-mails, que ele fazia questão de redigir à mão, com sua letrinha miúda. As cartas eram escaneadas e enviadas por e-mail. Uma vez, perguntei por que ele se dava ao trabalho de escrever tudo à mão, e ele respondeu: “Para que você saiba que sou eu mesmo.” Todas as suas cartas começavam com as palavras “Querido irmão.” E terminavam com “Fraternalmente, Francisco.”
Hoje, com toda a saudade e humildade, digo a ele: “Querido hermano, hasta siempre”.