17.06.25 | Mundo

“Iranianos só querem levar uma vida normal”

Em artigo na Folha de S.Paulo desta terça (17), o escritor João Pereira Coutinho comenta a opressão imposta pelo regime teocrático do Irã ao povo e os anseios dos iranianos por liberdade. Cita também a declaração de uma professora exilada, que chegou a apoiar a revolução iraniana que depôs o xá Rehza Pahlevi, em 1979, mas que depois se arrependeu: “Quando os homens determinam o que você deve vestir, afirmou ela mais tarde, também dirão o que você deve pensar”. Leia a seguir a íntegra do texto:

Às vésperas do ataque israelense ao Irã, soube pelo New York Times que o regime teocrático do país tinha proibido os iranianos de passearem seus cachorros pelas ruas.

O cachorro é um animal imundo para o Islã, e o regime não tolera que seu povo ande cá fora com semelhantes aberrações. Nem nas ruas nem dentro dos carros.

Parece uma notícia anedótica. De certa forma é —para nós, habitantes das democracias liberais, amantes de cachorros e de qualquer outra espécie domesticável.

Não é anedótico para os iranianos, que desde 1979 vivem uma experiência única: serem cobaias de uma teocracia medieval que determina o que eles podem fazer, dizer ou pensar.

É neles que penso agora, quando os mísseis vão descendo sobre Tel Aviv e Teerã. Sabemos o que Israel deseja: destruir o programa nuclear iraniano. Sabemos o que o regime do Irã deseja: sobreviver para chegar à bomba e "riscar Israel do mapa".

Mas, nas análises do momento, ninguém pergunta o que desejam os iranianos. Os que vivem no exílio, para começar, e também aqueles vivem no país, em exílio interior.

O historiador Arash Azizi procura responder à minha dúvida no seu "What Iranians Want" (Oneworld, 256 págs.). A resposta está contida no subtítulo da obra: "Women, Life, Freedom", referência ao movimento feminista, social e político que nasceu no país depois do assassinato de Mahsa Amini, uma jovem curda iraniana de 22 anos que a "polícia da moralidade" espancou até à morte.

O crime de Amini? Não ter o véu posto como mandam os aiatolás. Não foi caso único. As mulheres iranianas são, desde 1979, as principais vítimas da masmorra, o que não deixa de ser irônico: elas estiveram na linha da frente da oposição à monarquia autoritária do xá Reza Pahlevi.
De nada serviu. Com o regresso de Ruhollah Khomeini ao país, conta o autor que os "hezbollahis", verdadeiros fiscais paramilitares do novo regime, começaram o seu serviço: a imposição do véu para cobrir os cabelos das mulheres —e 74 chibatadas para quem aparecesse "despida" em público (sem véu e, pior ainda, com maquiagem).
Muitas feministas protestaram. Simone de Beauvoir, que sempre foi mais inteligente que o seu "partenaire", foi uma delas.
Nem todas seguiram Madame de Beauvoir. No livro, Arash Azizi conta a história de Homa Nateq, professora da Universidade de Teerã e autora neomarxista de referência, que aceitou todas as imposições dos clérigos em nome da luta anti-imperialista. O que era o véu no contexto da grande revolução?
Sem surpresas, Nateq acabou exilada e arrependida. Quando os homens determinam o que você deve vestir, afirmou ela mais tarde, também dirão o que você deve pensar.
Ou, citando dois versos do poeta Ahmad Shamlu: "Eles cheiram sua boca/ Para verem se você disse ‘Eu te amo’".
As iranianas querem que a "polícia da moralidade" não cheire suas bocas. E querem mais: liberdade de expressão, liberdade de religião. Isso confunde certas cabeças ocidentais, que nos últimos anos têm lutado heroicamente em nome da censura e do dogma.
Os iranianos, escreve Arash Azizi, já tiveram sua dose. É longa a lista de escritores "desaparecidos" e cineastas que filmam às escondidas, antes de buscar refúgio em Paris ou Londres. Ou antes de serem levados para a prisão de Evin.
Aliás, falando de cinema, Azizi gostaria que a indústria do país pudesse filmar livremente atrizes com seus cabelos longos (e como são belos os cabelos das iranianas!), beijos entre amantes, apertos de mão entre homens e mulheres, mães abraçando filhos.
Por fim, os iranianos querem paz. Como explica Arash Azizi, uma frase tem sido recorrente nas manifestações contra o regime: "Nem Gaza, nem Líbano, minha vida é pelo Irã".
O patriotismo dos iranianos não está em questão: eles querem um país digno, que não seja um pária internacional e esteja à altura de sua história milenar. Mas, para apoiar o Hamas ou o Hezbollah —organizações terroristas que só trouxeram ruína ao país—, essa conta já não fecha.
Ligo a TV e acompanho as imagens da guerra em curso. Os "especialistas" despejam análises: as provocações de Netanyahu ("Não respeita o direito internacional"), a duplicidade de Trump ("Sempre soube do ataque"), o pacifismo do aiatolá Khamenei ("Um líder espiritual") e o suposto direito do Irã a ter uma bomba nuclear ("Ora, Israel também tem!").
Ausentes dos comentários estão os iranianos, que só querem levar uma vida normal. Brindo a eles —e, sobretudo, a elas. Só me resta esperar que o dia da libertação esteja mais próximo.


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