21.07.25 | Mundo

“Por que é preciso que Israel seja o vilão?”

Em artigo publicado em O Estado de S.Paulo neste domingo (20), a jornalista e escritora Sheila Leirner comenta as “declarações despropositadas” do presidente Lula em relação a Israel “e o fato de não ter sancionado o “Dia da Amizade Brasil-Israel” — quando foi o brasileiro Osvaldo Aranha quem presidiu a sessão da ONU que criou o Estado hebreu, em 1948”. Leia a seguir a íntegra do texto:

Em seu discurso de 13 de junho, o presidente Emmanuel Macron aclamou o ataque de Israel ao dispositivo nuclear iraniano que “ameaça a Europa e o mundo”. No mesmo dia, o Itamaraty, ao contrário, condenou a ação. Assim como, depois, incriminou a providencial ação americana, formando com a Rússia, o “eixo da hipocrisia”. Ora sus, há duas semanas, quando o Brics realizou no Rio de Janeiro sua “cúpula anual do ódio ao Ocidente”, o presidente brasileiro, amigo de Teerã, pôde, mais uma vez, confortar e abraçar o governo teocrático daquele país.

Suas amizades, posturas, declarações despropositadas e o fato de não ter sancionado o “Dia da Amizade Brasil-Israel” —quando foi o brasileiro Osvaldo Aranha quem presidiu a sessão da ONU que criou o Estado hebreu, em 1948 —, causa indignação a muitos parlamentares. Lula já banalizou os horrores do 7 de Outubro, praticando um verdadeiro “lexicocídio”: o assassinato semântico de palavras. Acusou um país estritamente de direito — alvo do maior massacre desde o Holocausto — de “extermínio deliberado”. Para ele, os israelenses, que jamais cessaram de lutar por sua sobrevivência, “precisam parar com o vitimismo”. Uma inversão falaciosa, tão repugnante quanto reveladora.

Em São Paulo, no dia 15 de junho, muitas pessoas (“30 mil”, segundo os organizadores) participaram de uma marcha em apoio ao povo palestino, pedindo que o governo brasileiro rompa as relações comerciais com Israel. Por que só esse conflito obceca a tanta gente? Nenhum outro, mesmo o mais sangrento ou duradouro, jamais provocou uma mobilização simbólica semelhante. Nem o meio milhão de mortes na Síria nem as fomes organizadas no Iêmen nem as limpezas étnicas em Darfur, no Sudão, ou Tigré, na Etiópia.

Nenhum líder político discursa ou publica nas redes sociais, ninguém sai às ruas para defender tigrínios, curdos, ruaingas apátridas, sudaneses, yazidis, armênios, sírios ou cristãos perseguidos na África pelo Boko Haram e no Oriente. Tampouco vemos manifestações a favor de outros povos que sofrem crimes contra a humanidade. A comoção mundial é seletiva.

Deduz-se daí que o que alucina o Ocidente e o chamado Sul Global não é o destino dos palestinos. Fica evidente que o que os perturba muito mais, é o judeu livre do papel sacrifical. O judeu, precisamente, liberto da condição de vítima. O que incomoda é seu Estado próprio — soberano, forte, indiferente à “opinião internacional” e capaz de se defender.

Não se trata de uma empatia moral universal, mas de um “ponto de fixação” psíquico que, como tudo o que é emocional e remonta a experiências individuais, tem elucidação. Finda a guerra de 12 dias entre Israel e Irã, que confirmou, mais uma vez, o “judeu vencedor”, volta a “fixação” em Gaza.

Os fantasmas do conflito israelo-palestino 

Desde o Holocausto, a história consagrou o sofrimento judaico como símbolo máximo da inocência. Essa atribuição é incômoda, pesada, quase insuportável para a consciência ocidental e sobretudo antiocidental. As pessoas não sabem o que fazer com esse excesso de memória e dívida moral. Tornou-se um fardo. Muitos o honram seguida e ritualmente, a cada ano, em todas as comemorações, com cerimônias solenes. No entanto, secretamente — talvez inconscientemente — sonham em se livrar da obrigação.

Todos, judeus e não judeus, hoje, estão exaustos de prestar contas à Shoá e homenagear as vítimas de um crime hediondo e absurdo, do qual nunca compreenderão as atrocidades. Muitos, lamentavelmente, sobretudo os jovens, já não querem sequer lembrar.

Nesse contexto, o conflito israelo-palestino seduz menos por seus fatos — sem dúvida trágicos e insuportáveis — do que pelos fantasmas que evoca na psique, especialmente entre tolos e incautos. Estes, por sua incapacidade de entender os desafios e a complexidade do mundo, reagem com emoção primordial.

A criação e permanência do Estado legítimo de Israel oferece uma desculpa inesperada. O povo mártir tornou-se povo armado, civilizado, vitorioso, democrático, tolerante, generoso com outras etnias e religiões — com seus defeitos e suas qualidades, mas quase infalível. Motivos suficientes para inverter a memória. Ao excesso do antigo sofrimento judaico, deve corresponder, em justa simetria emocional, é claro, uma contra narrativa palestina: é a lógica do pêndulo moral.

Surge, então, o mimetismo invertido, perfeitamente expresso no “lexicocídio” perpetrado pelo presidente Lula: Gaza é “gueto”, palestinos são “deportados”, o valoroso Tsahal é “exército nazista”; e a guerra de defesa contra o Hamas terrorista, “genocídio”. Essa reviravolta semântica não é uma deriva, não é apenas delírio ideológico ou derrapagem retórica, mas uma necessidade psicológica e simbólica de liberação: é indispensável transferir o mal. Ao atribuir outra vez ao judeu, antigo alvo, o histórico crime cometido, tenta-se remir a própria culpa. Cada acusação torna-se uma tentativa de purificação por procuração.

Não se diz que a faixa de Gaza é um “gueto” porque é, mas porque é preciso que ela seja. A ironia suprema: acusa-se Israel com as mesmas palavras cunhadas para nomear o que foi feito com os judeus. Trata-se de um ritual secular de expiação: sacrifica-se o israelense, para lavar o judeu.

A cineasta e escritora Marceline Loridan-Ivens, sobrevivente do Holocausto, escreveu no seu relato póstumo ao pai, morto em Auschwitz: “Eles não nos perdoarão jamais o mal que nos fizeram”.

Eis porque esse conflito obceca tanto, e de maneira desproporcional. Porque ele oferece ao Ocidente e ao Sul Global a rara oportunidade de restaurar a inocência perdida, reenviando o judeu ao lugar da sua “culpa”. Trata-se de um rearranjo narrativo. Uma catarse.

No fundo, ninguém se importa com o destino dos cidadãos de Gaza. O que mobiliza seus “defensores”, detratores do Estado hebreu, não é a compaixão, nem mesmo a ideologia. É, acima de tudo, o alívio interior que essa fixação proporciona.

Sheila Leirner é jornalista, escritora, crítica de arte, foi curadora-geral da 18.ª e da 19.ª Bienais de São Paulo.


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