01.10.25 | Judaicas

“Yom Kippur e a fome”

Em artigo publicado nesta quarta (1/10) em O Estado de S.Paulo, o rabino Michel Schlesinger destaca a importância do Yom kippur e lembra a situação de fome em que vivem milhares de pessoas no mundo. “Neste ano, a palavra “fome” não é só metáfora. É dolorosamente real. Clamamos pelos reféns ainda em Gaza, privados de comida e água. Ao mesmo tempo, choramos diante do sofrimento de civis palestinos – adultos e crianças, sem comida nem bebida, pagando um preço inumano por uma guerra que não escolheram. Neste Yom Kippur, lamentamos esta e todas as demais guerras que a humanidade vem travando, sem que haja vencedores. Que nosso jejum nos conduza, como promete a prece, ao dia em que será estendida sobre todos nós uma verdadeira ‘tenda de paz’”. Leia a seguir a íntegra do artigo:

Certa vez, quando eu ainda vivia em São Paulo, o cardeal Dom Odilo Scherer convidou uma delegação judaica para participar de uma missa na Catedral da Sé. Ao final, ele nos chamou para um jantar festivo. Mas tratava-se dos dias intermediários da Páscoa judaica, Pessach, quando os judeus comem apenas alimentos preparados sob regras muito específicas.

Aproximei-me e disse: “Iminência, adoraríamos participar, mas não podemos comer esta comida.” Ele sorriu e respondeu: “Eu sei. Foi por isso que a Catedral encomendou comida kasher para vocês” (kasher indica alimentos preparados de acordo com as regras religiosas). Assim, uma delegação judaica acabou sentando-se no salão de uma igreja católica para comer bolinhos de matzá e gefilte fish, um prato tradicional judaico feito à base de peixe.

Meses depois, no Dia do Perdão – o Iom Kippur – convidei o cardeal para visitar a Congregação Israelita Paulista (CIP) na cerimônia de abertura da festividade, o Kol Nidrei. Do púlpito da sinagoga, contei a história daquele jantar na catedral e concluí, de maneira bem-humorada: “Iminência, naquela noite foi a Catedral que nos alimentou. Hoje é a nossa vez. Neste Iom Kippur, convidamos o senhor a jejuar conosco”.

O jejum de Iom Kippur é talvez a prática judaica mais conhecida por não judeus. Mesmo pessoas judias que pouco frequentam a sinagoga, que não mantêm uma cozinha kasher ou não acendem velas no Shabat, ainda assim jejuam neste dia. É, para muitos, o centro da identidade judaica. Mas o que significa esse jejum?

A tradição judaica o remete a Moisés. Os 40 dias entre o início do mês de Elul (último do calendário judaico) e o Iom Kippur correspondem aos 40 dias que ele teria passado no Monte Sinai recebendo as Tábuas da Lei. A Torá afirma que, durante esse período, Moisés não comeu nem bebeu, mas não explica o porquê.

Midrash, uma coletânea de histórias judaicas, dá a seguinte interpretação para o jejum de Moisés: ele esteve à espera da Torá no céu, entre anjos. Como os anjos não comem nem bebem, Moisés se adaptou ao costume local. Para provar seu ponto, o Midrash traz uma outra história bíblica. Quando os anjos visitaram Abraão e Sara em sua tenda no deserto, fizeram o contrário: comeram e beberam, em respeito à hospitalidade humana.

A meu ver, a lição que a tradição interpretativa judaica nos oferece é esta: a santidade está em adaptar-se ao outro, e honrá-lo.

E quanto ao jejum de Iom Kippur? A Torá diz: “Afligireis as vossas almas”. O mandamento do jejum não tem por finalidade afligir os corpos, mas sim “as almas”. O jejum não é visto como punição, mas um meio de nos libertar da obsessão com a comida e a bebida, para focar na fome do espírito.

Ao longo de gerações, o jejum do Dia do Perdão se tornou o gesto mais visível do Iom Kippur. Mais e menos abastados, jovens e idosos, religiosos, seculares e todos os que se encontram em algum ponto de conexão com a sua tradição judaica – por 25 horas, abrem mão das necessidades humanas mais básicas. O jejum termina com a oração de encerramento do Iom Kippur, chamada de Neilá.

Mas que significado tem essa fome? Ela não é apenas espiritual, mas também um gesto de solidariedade. Sentimos no corpo a fome que milhões sentem todos os dias. Iom Kippur é, desta forma, um ensaio de compaixão.

O profeta Isaías já advertiu contra um jejum vazio: “Acaso é este o jejum que escolhi? Um dia para afligir-se? Não! Este é o jejum que desejo: repartir o pão com o faminto, libertar os oprimidos, acolher o pobre em tua casa”.

Neste ano, a palavra “fome” não é só metáfora. É dolorosamente real. Clamamos pelos reféns ainda em Gaza, privados de comida e água. Ao mesmo tempo, choramos diante do sofrimento de civis palestinos – adultos e crianças, sem comida nem bebida, pagando um preço inumano por uma guerra que não escolheram. Neste Iom Kippur, lamentamos esta e todas as demais guerras que a humanidade vem travando, sem que haja vencedores.

Neste ano, as palavras da prece judaica Hashkivenu soam diferentes: “Remova de nosso meio o inimigo, a peste, a espada, a fome e a tristeza”. Antes, elas pareciam quase poéticas. Desde o 7 de Outubro e a guerra em Gaza, elas soam profundamente inspiradas na realidade.

O Iom Kippur, porém, não nos chama ao desespero, mas à responsabilidade. A fome que sentimos não deve ser interrompida com o toque final do shofar, o chifre de carneiro que soamos na Neilá. Ela deve nos acompanhar; deve transformar a forma como doamos, como votamos, como cuidamos, como comemos e como alimentamos.

Este é o sentido das palavras de Isaías, do sentido do jejum de Moisés e do sentido do gesto de Dom Odilo Scherer ao oferecer uma refeição kasher: não afligir o corpo, mas elevar a alma.

Que nosso jejum nos desperte para a fome dos outros – e nos mova à ação. Que nos conduza, como promete a prece, ao dia em que será estendida sobre todos nós uma verdadeira “tenda de paz”.

 

Michel Schlesinger é bacharel em Direito pela USP, representante do Conselho Rabínico de Nova York para o Diálogo Inter-religioso, é rabino da comunidade Hewlett-East Rockaway Jewish Centre.


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