27.10.25 | Brasil

“50 anos por Vlado: o tempo, a memória e aquilo em que meu pai acreditava”

Em artigo no jornal O Estado de S.Paulo de sábado (25), Ivo Herzog, filho de Vlado e presidente do Conselho do Instituto Vladimir Herzog, fala sobre as lembranças que tem do pai, do legado que ele deixou e da tragédia que abalou a família. “Hoje, ao voltar à Catedral da Sé, penso na criança que fui, nos olhos do meu pai voltados ao céu e no País que ainda busca justiça. E percebo que, apesar de tudo, seguimos aqui — sobrevivendo e acreditando que a democracia, como a luz de uma estrela distante, ainda pode iluminar o caminho de todos nós”. Lea a seguir a íntegra do texto:

Cinquenta anos se passaram desde a morte do meu pai, Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-Codi em 25 de outubro de 1975. Meio século desde o dia em que o Estado brasileiro decidiu mentir, tentando transformar um crime bárbaro em suicídio. Meu pai era jornalista. Acreditava no diálogo, na informação e na reflexão como formas de enfrentar a ditadura e o autoritarismo. Não usava armas, usava palavras — e, por isso mesmo, foi morto. Naquele tempo, bastava pensar diferente para ser tratado como inimigo.

Até o dia 24 de outubro de 1975, minha vida era comum. Eu tinha nove anos, um irmão mais novo e uma infância tranquila, feita de rotinas simples e lembranças que ainda hoje me habitam. Passávamos fins de semana no sítio da família, onde meu pai e meu avô criavam pombas e coelhos, observavam o lago à noite e olhavam o céu em busca da Lua e dos anéis de Saturno. Ele gostava de astronomia, amava o cinema, e foi com ele que aprendi a importância de olhar e contemplar. Sua câmera fotográfica — que ainda guardo — é um pedaço dessa herança.

No dia seguinte à sua morte, minha mãe entrou no quarto e disse que ele havia morrido. Num primeiro momento, contou que tinha sido um acidente de carro. Não lembro das palavras exatas, mas me recordo da avalanche que se seguiu: o velório, o calor, as multidões, o enterro interrompido, o choro, a confusão, a dor. A infância se desfez. A tragédia que nos atingiu atravessou o País. A farsa do suicídio indignou uma sociedade que começava a despertar. O rabino Henry Sobel se recusou a enterrar meu pai como suicida e, ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo Jaime Wright, num gesto que mudou a História, realizou o ato ecumênico de 31 de outubro, na Catedral da Sé, que reuniu mais de 8 mil pessoas e tornou-se símbolo de resistência, fé e início do fim da ditadura.

Cinquenta anos depois, neste 25 de outubro, voltaremos à mesma catedral para lembrar aquele momento e tudo o que ele representa. A Comissão Arns e o Instituto Vladimir Herzog recriarão o ato inter-religioso que desafiou a ditadura e se transformou num marco da redemocratização. Uma cerimônia para lembrar meu pai e homenagear todas as famílias que tiveram seus entes mortos ou desaparecidos, todos os que acreditaram que a verdade e a justiça são fundamentos da vida democrática. Será uma noite de homenagens e memória, com vozes religiosas, artísticas e políticas reunidas em torno de um mesmo propósito: a democracia e o compromisso coletivo com a dignidade humana.

Mas o Brasil ainda carrega uma dívida imensa. Passadas cinco décadas, o Estado nunca levou aos tribunais os responsáveis pelas mortes, torturas e desaparecimentos da ditadura. Nunca houve punição, nunca houve justiça. A Lei da Anistia de 1979, em sua interpretação mais conveniente, serviu para absolver os algozes. O Supremo Tribunal Federal mantém há mais de 80 anos, e está nas mãos do ministro Dias Toffoli, a ação que poderia revisar essa distorção. Enquanto isso, o País repete padrões de impunidade e a ausência de justiça continua alimentando delírios autoritários que voltam a ameaçar nossa democracia.

É impossível não traçar paralelos entre o passado e o presente. O julgamento dos envolvidos no ataque de 8 de janeiro de 2023 é um marco inédito e também um espelho do que não conseguimos fazer há meio século. Pela primeira vez, vemos generais e articuladores de um golpe sendo punidos. Há um sentimento majoritário contra a anistia para quem atenta contra o Estado de Direito. Essa reação é fruto da memória — o eco de histórias como a de meu pai, que nos lembram o que acontece quando o País se cala diante do autoritarismo.

A história do Brasil é uma sucessão de golpes e rupturas, quase todos com a participação dos militares — e em nenhum deles houve responsabilização. Esse ciclo de impunidade é a sombra que ainda paira sobre nossa democracia. E é justamente por isso que lembrar Vladimir Herzog é mais do que recordar uma vítima, é tentar impedir que a história se repita.

Meu pai acreditava que uma sociedade democrática é aquela em que a vontade da maioria serve para proteger os direitos de todos, inclusive das minorias. Essa ideia, que parece simples, ainda é revolucionária. Hoje, quando vejo parte da extrema direita tentar se apropriar do discurso dos direitos humanos, sinto indignação e ironia. Os mesmos que chamavam direitos humanos de “coisa de bandido” agora se dizem violados. O dia em que um deles sentir na própria pele o que foi a tortura, talvez compreenda o significado dessa palavra. Até lá, é melhor ouvir e aprender com a dor dos outros.

Não posso deixar de lembrar as verdadeiras heroínas dessa história: minha mãe, Clarice Herzog, Eunice Paiva, Therezinha Zerbini e tantas outras. Elas enfrentaram o Estado com coragem, transformaram o luto em luta e iniciaram o movimento pela anistia.

Acredito que o ato de hoje será um reencontro do Brasil consigo mesmo. Estaremos ali para lembrar a morte de Vladimir Herzog, mas, sobretudo, para celebrar a vida, a coragem e a persistência de todos os que acreditaram num país melhor. Não será um ato de tristeza, mas de orgulho e celebração: pela luta das famílias, pela resistência dos jornalistas, artistas e religiosos que, mesmo sob repressão, escolheram o lado da dignidade.

O tempo passou, mas o sentido permanece. O ato de 1975 marcou o início do fim da ditadura; o de 2025 deve marcar o recomeço da consciência democrática. Porque só há futuro quando há memória. E, se algo aprendi nesses 50 anos, é que a verdade pode ser sufocada, mas não morre.

Hoje, ao voltar à Catedral da Sé, penso na criança que fui, nos olhos do meu pai voltados ao céu e no País que ainda busca justiça. E percebo que, apesar de tudo, seguimos aqui — sobrevivendo e acreditando que a democracia, como a luz de uma estrela distante, ainda pode iluminar o caminho de todos nós.


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