28.10.25 | Mundo

“Para que serve a ONU?”

Editorial de O Estado de S.Paulo do último dia 24 comenta os 80 anos da ONU e sugere que a organização deveria retomar suas prioridades originais, sintetizadas por seu segundo secretário-geral, Dag Hammarskjöld: ‘Não levar a humanidade ao paraíso, mas salvá-la do inferno’. “A ONU recrimina Israel com fervor ritual, mas fecha os olhos a atrocidades na China, em Cuba ou no Irã. O Conselho de Direitos Humanos é frequentado por ditaduras, e comissões ‘anticorrupção’ abrigam regimes cleptocráticos. A organização fala em ‘diversidade’ e ‘inclusão’, mas cede palanques a governos que perseguem minorias e criminalizam dissidentes. O discurso dos direitos humanos tornou-se instrumento de poder – manejado por quem os viola – e retórica de conveniência para diplomatas que confundem neutralidade com covardia”. Segue a íntegra do texto:

O mundo mudou demais para caber na Carta da ONU. Criada no rescaldo da 2.ª Guerra e sob a promessa de uma paz regulada por leis e instituições, a organização chega aos 80 anos com a autoridade moral corroída e a utilidade prática em dúvida. Sua história é a de uma ideia nobre que resistiu a todos os desastres – mas já não inspira confiança de que possa evitá-los no futuro.

A Assembleia-Geral virou um teatro de retórica, onde ditadores discursam sobre direitos humanos e democracias se calam para não constranger parceiros comerciais. O Conselho de Segurança, paralisado por vetos cruzados, segue preso ao mapa geopolítico de 1945, e não opera sobre o de 2025. A burocracia se multiplicou num festival de agências, comissões e secretariados – cada um com seu orçamento e “missão global” –, mas com pouca coordenação e quase nenhum resultado. Sob a retórica de “governança global”, instalou-se um ecossistema autossuficiente de carreiras, relatórios e conferências que perpetuam a instituição, não a reformam; multiplicam acrônimos – e fracassos. Em vários sentidos a ONU deixou de ser um árbitro e se tornou uma ONG de luxo, povoada por tecnocratas que acreditam poder mudar o mundo a partir de um parágrafo bem redigido.

Mais grave que a ineficiência é a seletividade moral. A ONU recrimina Israel com fervor ritual, mas fecha os olhos a atrocidades na China, em Cuba ou no Irã. O Conselho de Direitos Humanos é frequentado por ditaduras, e comissões “anticorrupção” abrigam regimes cleptocráticos. A organização fala em “diversidade” e “inclusão”, mas cede palanques a governos que perseguem minorias e criminalizam dissidentes. O discurso dos direitos humanos tornou-se instrumento de poder – manejado por quem os viola – e retórica de conveniência para diplomatas que confundem neutralidade com covardia.

Esse colapso ético reflete o colapso da própria ordem que a ONU pretendia sustentar. A era do multilateralismo dourado – quando as grandes potências ao menos fingiam cooperar – acabou. O sistema internacional entrou num estado hobbesiano de competição permanente. Os EUA já não querem e a Europa não consegue sustentar a ordem liberal. O vácuo é ocupado por autocracias assertivas, guerras regionais e democracias divididas. O mundo está menos governado por regras do que por ressentimentos – e a ONU, paralisada entre blocos rivais, é o espelho desse caos.

A tentação é descartá-la como relíquia. Seria um erro. Mesmo irrelevante em muitas frentes, a ONU continua indispensável em algumas, como ajuda humanitária, segurança alimentar, refugiados e cooperação científica. Ainda é o único fórum onde rivais podem falar antes de se enfrentar, e onde pequenas nações podem se projetar, ao menos simbolicamente, no concerto das potências. O problema não é o conceito de multilateralismo, mas sua inflação: querer que a ONU seja tudo é o que a impede de funcionar no que realmente importa.

Reformas amplas – como expandir o Conselho de Segurança, eliminar o veto ou redefinir mandatos – podem até ser desejáveis, mas são politicamente inviáveis. O caminho possível é o da modéstia: tornar a instituição mais transparente, enxuta, mensurável e responsabilizável. Estabelecer prioridades com base em evidências, não em slogans. Reavaliar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cuja ambição utópica virou álibi para a ineficiência. Reduzir o palavrório e medir resultados: salvar menos causas, hierarquizando-as com eficácia. E, sobretudo, recuperar alguma credibilidade moral – começando por aplicar às ditaduras os mesmos padrões de julgamento que aplica às democracias.

A ONU octogenária é menos o símbolo de uma esperança do que o lembrete de um limite. As nações podem fracassar separadamente, mas só cooperando ainda têm chance de evitar o colapso coletivo. Reformar o possível, delegar o resto à simbologia – eis o máximo de idealismo que a conjuntura permite. Se quiser sobreviver à própria irrelevância, a ONU terá de provar que pode ser útil ao mundo que existe, não ao que sonhou em 1945 – e que ainda há espaço, mesmo nas ruínas do multilateralismo, para um mínimo de ordem diante do caos.


Receba nossas notícias

Por favor, preencha este campo.
Por favor, preencha este campo.
Por favor, preencha este campo.
Invalid Input

O conteúdo dos textos aqui publicados não necessariamente refletem a opinião da CONIB. 

Desenvolvido por CAMEJO Estratégias em Comunicação