31.10.25 | Brasil

“Metamorfoses e o indelével”

Em artigo em O Estado de S.Paulo desta sexta-feira (31), o médico e escritor Paulo Rosenbaum cita Sigmund Freud - “Civilização é a habilidade de adiar a gratificação do instinto” – e afirma que "o objetivo do texto não é promover uma discussão epistemológica sobre a ciência, mas discutir aquele que talvez seja um dos assuntos mais prevalentes no mundo contemporâneo: o retorno de ideários racistas que se encaixam nas teses compatíveis com a intolerância religiosa e o criptonazismo, assim como as manobras linguísticas usadas para validá-las. E qual seria a metodologia usada para obter tal validação?”, questiona ele. Leia a seguir a íntegra do artigo:

Existem algumas exigências para que um saber preencha critérios metodológicos suficientes para ser considerado científico. Os ideólogos nazistas investiram recursos em teorias e pesquisas sob o formalismo do rigor científico para tentar comprovar a existência de uma pureza genética e demonstrar uma hierarquia racial. Médicos, cientistas e intelectuais a defenderam-na entusiasticamente sob o argumento de que se a superioridade ariana, enquanto ideia poderia ser questionada como ideologia, o que chamavam equivocamente de ciência pairaria acima da efemeridade das opiniões. O mesmo mecanismo também funcionou com outras doutrinas filosóficas e econômicas que queriam se fazer passar por epistemes consolidadas.

O objetivo do presente artigo não é promover uma discussão epistemológica sobre a ciência, mas discutir aquele que talvez seja um dos assuntos mais prevalentes no mundo contemporâneo: o retorno de ideários racistas que se encaixam nas teses compatíveis com a intolerância religiosa e o criptonazismo, assim como as manobras linguísticas usadas para validá-las.

E qual seria a metodologia usada para obter tal validação?

Basicamente, mas não apenas, consiste na extensa utilização do termo sionismo, o qual, a rigor, é uma das sinonímias camufladas usadas para se referir ao povo judeu. Dentro dessa perspectiva ideológica, os judeus devem ser combatidos por todos os meios, e, para esse fim, o caminho adotado deve passar pela progressiva deslegitimização do Estado de Israel.

O termo “antissemitismo” foi cunhado no final do século 19 pelo jornalista alemão Wilhelm Marr. A palavra composta “anti” e “semitismo” foi usada pela primeira vez na imprensa na Alemanha em 1879 como uma terminologia científica pretensamente asséptica. Uma nomenclatura cuja função era estabelecer uma nomenclatura mais respeitável para uma velha prática discriminatória, organizada e mantida por distintos povos e culturas em momentos cronológicos distintos.

A rigor, o termo “antissemitismo” carrega uma distorção, pois os semitas seriam todos os descendentes de Sem, um dos filhos do patriarca bíblico Noé, portanto, uma ascendência comum tanto aos árabes como aos judeus. A palavra padronizou uma classificação para substituir a politicamente inconveniente expressão “judenhass” (ódio aos judeus). A despeito desse engano, o termo perdura, já que sua adoção se tornou conveniente.

E desde então, a palavra tem sido oficialmente usada para se referir apenas ao sentimento antijudaico. Seguindo uma lógica linguística etimológica, o termo mais aproximado para traduzir a especialidade racista contra o povo judeu seria misojudaísmo (misos, prefixo grego para ódio ou repulsa).

Embora a rejeição a uma raça, etnia ou religião possa ser expressa como um preconceito, vale dizer, uma aversão não personalizada, no caso específico do ódio aos judeus, ela assumiu uma característica rara, porquanto única. Trata-se de um sistema acumulativo em que desinformação, boatos conspiratórios e libelos de sangue confluíram para sustentar o caso.

Das acusações de deicídio aos decretos teológicos durante a vigência do Santo Ofício da Inquisição (1536-1834) até serem transformadas em sentenças judiciais por meio dos juízes que promulgaram as leis arianas no tribunal de Nuremberg, pautadas em 15 de setembro de 1935. Tais teses aglutinaram características suficientes, tanto laicas como religiosas, para criar um judeu imaginário prototipal, uma tipologia artificial que concentraria aspectos maleficentes do mundo. O preconceito geralmente é modelado por meio de imagens caricatas, e vem carreado pela linguagem, cujo exemplo mais autoevidente talvez seja o verbo “judiar”.

O iluminismo e a adesão dos povos europeus aos valores humanistas e universalistas que se seguiram à Revolução Francesa transformaram, temporariamente, a situação do segregacionismo no qual os judeus viviam. Durou até o colapso da ilusão com o trágico desfecho durante o Holocausto.

Tais características negativas penetraram lentamente, mas persistentemente nas várias culturas e no imaginário popular. Alguns panfletos vieram dos porões da polícia secreta czarista com um suposto plano dos descendentes de Moisés para subjugar o mundo.

Houve um ressurgimento e reformatação do misojudaísmo e o caso mais notável deu-se com o caso envolvendo o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, falsamente acusado de vender segredos militares para os alemães, episódio que dividiu a Terceira República Francesa de 1894. A sentença de traição foi anulada em 1906, porém, somente em 1995, o exército francês reconheceu oficialmente a sua inocência. Um lapso temporal tão longo para desfazer o erro funciona a favor da desinformação e sedimenta o terreno por onde corre o racismo.

Se os argumentos para as acusações sofrem metamorfoses, o objeto da cólera permaneceu indelével.

A lenta infusão de séculos de ódio fez-se por meio do sentimento, não da razão. A racionalização do misojudaísmo reduz-se a uma justificativa precária para uma pulsão irracional. Não é, portanto, um equívoco absoluto aproximá-lo de um distúrbio psíquico de cunho sociopático.

O racismo misojudaico assumiu dimensões dramáticas com aumentos exponenciais de episódios que transitam entre assédio, ameaças de violência, culminando em incêndios, agressões e mortes.

Ressalte-se que não se trata de interditar a crítica — perfeitamente aceitável — ao atual governo eleito em Israel. Entretanto a crítica não pode servir como um salvo-conduto para vilificá-lo. A difamação ocorre sob outra perspectiva: defender os cidadãos de um país atacado em sete fronts que se protege com sucesso e poucas baixas, não vem recebendo a devida solidariedade, pelo contrário, chovem acusações infundadas como números inflacionados de morte de civis em Gaza e denúncias vazias de apartheid. Na era da informação instantânea, o poder para espalhar desinformação é muito maior do que o de corrigi-la.

O Estado judaico não foi criado apenas em função da prolongada chacina durante a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, que determinou, entre outras tragédias, a Shoah: a eliminação de 6 milhões de vidas judias. Este fato também deve ser lido de uma forma dialética: caso Israel existisse antes de 1938, muito provavelmente o holocausto não tivesse a dimensão que teve, nem a negligência do mundo tivesse sido tão escandalosa.

A novidade é que parcela significativa de alas políticas autodenominadas como progressistas, portanto dentro do que já foi outrora conhecido como o espectro da esquerda, também passou, com diferentes níveis de engajamento, a encampar a luta contra os judeus. E não apenas como uma ação que mimetiza algumas das teses nazistas, mas como leitmotiv para suprir o patético esvaziamento das próprias pautas. Especialmente frente ao êxito relativo de liberdade política, econômica e religiosa que vigoram nas grandes democracias ocidentais. Caberia à esquerda não retrógada recusar esta tremenda armadilha histórica: alta traição de alguns de seus fundamentos e princípios axiológicos.

Esta cooptação de grupos e instituições contra a cultura e valores judaicos, propulsionada por movimentos como a irmandade muçulmana, tem caráter difuso, isso é, tem sido propagado tanto por defensores do extremismo marxista, como pelos simpatizantes das teses filonazistas. Amparados pela ilusão de que a “narrativa” pode substituir fatos, legiões são encorajadas para exercer a intolerância.

O grande paradoxo é que as pautas se tornaram promiscuas numa orgia de ideologias conflitantes unificadas. Apoiadores de grupos terroristas uniram-se com pessoas e instituições que recebem subsídios obscuros e que, portanto, já não se importam em confessar e deixar fluir instintos incompatíveis com os códigos civilizados.

O que une os extremos ideológicos contra os judeus não é exatamente apenas a oposição ao sionismo, mas à uma outra ideia revolucionária, que subjaz nos pressupostos mosaicos: a primazia absoluta do sujeito em relação ao Estado.

Haverá alguma perspectiva de cura para lidar com a epidemia de sentimento misojudaico num mundo tão fraturado?

Se há quem ressignifique a fé como a convicção da esperança, é preciso reconhecer que temos um impasse colocado para o futuro de Israel. Como conseguir sobreviver, e ao mesmo tempo construir uma boa imagem? E qual imagem? Apostaria na imagem da verdade e da justiça, dos valores não apenas civilizacionais, mas o ethos que guiou a nação hebraica até aqui. Pujança militar e tecnológica podem não bastar. É preciso impulsionar uma nova concepção de hasbará (palavra hebraica cuja tradução se aproxima de “explicação”) para advogar e reconquistar os sentimentos, mais do que pautar suas razões.

Uma possibilidade é mostrar que a existência de um Estado que abriga os judeus não só está consolidada, como permanece fiel às suas origens formadoras, mostrando-se plural, democrático, e, sobretudo fiel ao núcleo duro que o constituiu. Inclusive para prestar mais atenção às vicissitudes enfrentadas por seus cidadãos honorários: as comunidades judaicas que hoje vivem novamente acuadas na diáspora.

Há uma sensível mudança pragmática na geopolítica: Israel não está mais pedindo permissão para sobreviver, nem oferecendo satisfações para o mundo. Aliás, justificar-se excessivamente legitima, simbolicamente, o questionamento. Isso não significa que os esforços da diplomacia e do pragmatismo político não devam voltar a ter prioridade e uma performance mais vigorosa e compreensiva.

A ideia central é afirmar a autodeterminação de forma ainda mais categórica, e, se necessário, até agressivamente, sem relativizar ou permitir que relativizem as justificativas de sua permanência.

Quando perguntaram para Isaiah Berlin “o que é um judeu?”, o filósofo e historiador britânico respondeu:

“Alguém com senso histórico”.

E é precisamente a partir da densidade representada pela consciência histórica adquirida, que será possível declarar: o mundo não acabará. O mundo mal começou, e nós, habitantes, decidimos permanecer. Ficaremos por aqui, de preferência com a paz nossa de cada dia. Que seja ainda em nossos dias.


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