17.12.25 | Brasil
“Quando a retórica se transforma em gatilho de violência”
“O discurso de ódio antissemita, na esteira da Guerra de Gaza, criou o ambiente para esse tipo de ataque cruel e covarde.” A afirmação do professor Gustavo Binenbojm não é apenas uma análise jurídica ou política — é um alerta moral. Um chamado à consciência em tempos em que palavras, repetidas à exaustão, deixam de ser retórica e se transformam em gatilhos de violência. Advogado, jurista, escritor e professor titular da Faculdade de Direito da UERJ, Gustavo Binenbojm falou ao Histórias Reais da CONIB sobre sua trajetória intelectual, sua história familiar, o lançamento do livro Antissemitismo Estrutural e a retirada do Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que, para ele, além de juridicamente inconstitucional, é um retrocesso. “O gesto carrega um peso simbólico devastador: o enfraquecimento do compromisso do Estado brasileiro com o combate ao antissemitismo”, diz ele. A entrevista foi pré-gravada, mas, após o ataque antissemita ocorrido no dia 14 na Austrália, ele sentiu a urgência de acrescentar um comentário que ecoa para além das fronteiras nacionais.
“É inevitável lembrar que, em 8 de outubro de 2023, havia manifestantes nas ruas de Sidney celebrando o ataque do Hamas que, na véspera, vitimara cerca de 1.300 pessoas em Israel. As palavras são o gatilho da ação.”
Para Binenbojm, não há surpresa quando o ódio discursivo se converte em violência física. O reflorescimento oportunista do discurso antissemita, intensificado na esteira da Guerra de Gaza, cria um terreno fértil para ataques cruéis e covardes. O que se diz, o que se compartilha e o que se legitima publicamente molda comportamentos, autoriza agressões e rompe os limites da convivência civilizada.
Ao afirmar que os incitadores do ódio devem ser responsabilizados como coautores da violência, Binenbojm rompe com a falsa ideia de que o antissemitismo se manifesta apenas em atos isolados. Para ele, trata-se de um fenômeno estrutural, persistente e global — um vírus antigo, comparável ao racismo, que permanece latente na corrente sanguínea da humanidade.
De tempos em tempos, esse vírus reinfecta o tecido social e explode com força pandêmica: em tiros, gritos, perseguições e ameaças, tanto no mundo real quanto no virtual.
A reflexão de Gustavo Binenbojm nos convoca à vigilância ética e ao compromisso com a palavra responsável. Porque combater o antissemitismo não é apenas reagir à violência consumada, mas interromper o ciclo antes que ele se complete. É compreender que cada discurso importa — e que a defesa da dignidade humana começa, sempre, pela coragem de nomear e enfrentar o ódio.
Essa compreensão não nasce apenas da teoria. Ela é atravessada pela história pessoal.
Origem
Pelo lado paterno, a família Binenbojm carrega as marcas profundas da diáspora judaica. Seus avós, judeus poloneses da cidade de Rokitno, sobreviveram graças à imigração para o Brasil, enquanto quase toda a família que permaneceu na Europa foi dizimada pelo Holocausto. O Brasil foi abrigo, mas não apagou o trauma. Sua avó, devastada pela perda absoluta de seus familiares, adoeceu gravemente após a guerra. Seu avô criou praticamente sozinho três filhos, enquanto tentava reconstruir a vida em um país estranho, com outra língua e outra cultura.
Diante do medo e da insegurança, tomaram uma decisão dolorosa: não negar a identidade judaica aos filhos, mas orientá-los a escondê-la em público. Uma escolha de sobrevivência, típica de judeus marcados por traumas extremos. Entre a afirmação e a assimilação, optaram pela proteção.
Essa história de silêncios impostos e identidades adiadas atravessou gerações. O pai de Gustavo casou-se fora da comunidade judaica. Ele próprio foi educado distante do judaísmo. Ainda assim, algo permaneceu. Uma herança invisível, mas insistente. Seu avô o escolheu como depositário da memória familiar, aquele a quem confiou o fio da história interrompida. Como lhe disse o rabino Nilton Bonder, em frase que se tornou central em seu livro: “Só é judeu quem tem um neto judeu”. Naquele gesto, o avô buscava continuar existindo, resistindo, sendo.
Antissemitismo Estrutural
É dessa confluência entre memória pessoal e reflexão intelectual que nasce Antissemitismo Estrutural. Mais do que um ensaio, o livro é um chamado ético. Binenbojm analisa o antissemitismo como uma patologia social profunda, que se reinventa ao longo dos séculos: já foi religioso, depois racial, hoje se disfarça de antissionismo radical e campanhas de deslegitimação do Estado de Israel. Um ódio que encontra nas redes sociais terreno fértil para a desinformação e para a simplificação ideológica, onde o bode expiatório reaparece sempre que a humanidade busca um inimigo comum.
Esse fenômeno, alerta o autor, não está distante. Ele se manifesta de forma alarmante também no meio acadêmico brasileiro, onde tentativas de censura, intimidação e silenciamento de vozes judaicas ou pró-Israel têm se tornado frequentes. Estudantes judeus, relata, vivem com medo de se manifestar, receosos de ataques, discriminação e prejuízos acadêmicos e profissionais. O espaço que deveria ser do pensamento crítico transforma-se, perigosamente, em território de exclusão.
Saída do Brasil da IHRA
Nesse contexto, a retirada do Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) representa, segundo Binenbojm, um grave retrocesso. Além de juridicamente inconstitucional e injustificável, o gesto carrega um peso simbólico devastador: o enfraquecimento do compromisso do Estado brasileiro com o combate ao antissemitismo. Para uma comunidade de cerca de 150 mil brasileiros judeus, trata-se de uma ferida aberta — e de um sinal preocupante de tolerância ao preconceito.
Ele afirma que conceitos da IHRA não são vinculantes e o Brasil tem leis internas muito mais amplas. No Brasil, desde 2003, o antissemitismo é considerado uma forma de racismo e as injúrias antissemitas, ofensas pessoais, são uma forma de ofensa racial, injúria racial. São crimes no Brasil que nada têm a ver com isso. O que houve, na verdade, foi o uso político dessa saída do Brasil da IHRA para atender a uma base da esquerda antissemita brasileira. E eu acho isso lamentável e penso que o presidente deveria se retratar e pedir desculpas à comunidade judaica brasileira.
A história de Gustavo Binenbojm é, ao mesmo tempo, singular e coletiva. É a história de uma família marcada pelo exílio, de um neto escolhido para guardar a memória, de um intelectual que transforma dor em pensamento e pensamento em ação. Em tempos de ódio ruidoso, sua voz reafirma que lembrar é resistir, nomear é combater e silenciar jamais pode ser opção.
Porque quando o antissemitismo retorna, não atinge apenas os judeus. Ele testa, mais uma vez, os limites morais da humanidade.